Certo dia, numa loja de quadrinhos da cidade de São Paulo, encontrei “Chuva de merda”, do Luiz Berger; quem gosta de ler Marcatti, Pablo Carranza ou Lobo Ramirez, certamente aprecia uma HQ com um gigante bêbado na capa – à semelhança de monstros do cinema japonês, animes e mangás –, cagando na cidade e na população, não menos escrota. Em “Chuva de merda” se reúnem várias HQs, entre elas, histórias coloridas, em preto e branco, tiras etc., todas da autoria do Luiz Berger; meses depois, conheci pessoalmente o autor em feiras de quadrinhos, quando adquiri Goró, outra coletânea, dessa vez com outros artistas além dele mesmo, com as histórias tematizando bebidas alcoólicas e seus efeitos.
Chuvas de merda, bêbedos… por que tanta podridão? Em “Chuva de merda”, Berger apresenta duas personagens, isto é, o Rato Robson, um rato de esgoto gigante, e Seu Raimundo, um bêbado de rua; reunidos na mesma narrativa, ambos são manipulados por Jesus, quem se manifesta na forma de lombriga, saída do ânus de um gato morto – esse gato é o Manda-Chuva na versão gato de beco, sem a assepsia dos estúdios Hanna-Barbera –; a seguir, Jesus-Verme os acompanha a uma festa, em que ambos matam, sem querer, o filho de Satã. Assim, em sua parábola, Luiz Berger reduz tudo ao submundo; nela, Jesus não é melhor do que Robson, Raimundo ou o próprio Satã.
Até o alegre Bolinha é vítima do quadrinista… o Bolinha, criação de Marjorie Henderson Buell, é criança sossegada; quando surgiram em 1935, Bolinha e Luluzinha contrastavam com as tradicionais crianças terríveis das histórias em quadrinhos, feito os tradicionais Hans e Fritz, de “Os Sobrinhos do Capitão”, criação de Rudolph Dirks, 1897. No mundo de Berger, porém, Bolinha se torna um criminoso antropófago, condenado à prisão por comer bebês; na HQ, o policial é o sargento Tainha, da turma do Recruta Zero, de Mort Walker, 1951.
Por que macular o Bolinha? Antes de tudo, porque é engraçado! Citar é também homenagear, não se pode esquecer de que Bolinha e Luluzinha nem o Recruta Zero são dramas, trata-se de comédia, feito a obra de Luiz Berger; além disso, mediante o humor, muitos autores se contrapõem às mazelas da humanidade. Desse ponto de vista, problematizando o estilo de Berger, vale a pena citar, da literatura infantil holandesa, a escritora Els Pelgrom, autora do conto infantil “A Pequena Sofia”; em linhas gerais, Sofia, uma menininha, gravemente doente, não pode comparecer à festa de Natal, por isso seus bonecos encenam para ela a peça “O mundo é um vale de lágrimas”. Na peça, os bonecos ganham vida e, ao participar do mundo, assumem papéis sociais, com alguns se tornando ladrões, outros, burgueses etc.; e nesse mundo, bastante injusto, o ursinho de pelúcia surge como abominável cidadão dono de suas propriedades, o palhaço, ladrão condenado à morte, entre outros. A seu modo, Berger faz algo semelhante, pois, quando Bolinha ou Jesus habitam outras narrativas, bem mais mundanas, um é antropófago e o outro, lombriga do mal, ou seja, doença.
Por fim, Berger é um desenhista fantástico. Na HQ “A Viagem de Seu Raimundo”, publicada na “Chuva de merda” e no “Goró”, há duas narrativas colocadas em paralelo, quer dizer, a do bêbado imundo e a do rico ocioso; apresentadas assim, não há como saber se o bêbedo delira, imaginando-se magnata, ou se o magnata alucina quando bebe. A resposta certa não importa… na HQ do Berger se tematiza, justamente, essa dúvida e muitas mais; importa, antes de tudo, a excelência do traço, a riqueza dos detalhes, a disposição dos quadrinhos nas páginas e a composição do roteiro.