Desde as origens das artes, o abuso das autoridades instituídas é tema tratado com veemência; já em Homero, século VIII aC, a célebre ira de Aquiles e seu abandono da guerra de Troia foram motivados por decisões injustas. Dessa maneira, não cabendo no espaço desta coluna análises amplas das relações entre arte e direito, sempre é possível refletir sobre o tema, sobretudo quando partimos das considerações de Ingmar Bergman no filme “O rito”, lançado em 1969, com atuações de Ingrid Thulin, Anders Ek e Gunnar Björnstrand nos papeis dos artistas de teatro e Erik Hell, no papel do juiz.
Em meio ás variadas interpretações do filme, certamente há os temas do poder judiciário e dos falsos crimes, isto é, dos crimes inventados pelo sistema burocrático e, não raramente, demencial da justiça. Evidentemente, poucos contestariam serem crimes o assassinato, o estupro e o cárcere privado, entretanto, que delito grave há em fumar, beber, blasfemar? No Brasil, por exemplo, a liberdade de expressão está sendo criminalizada paulatinamente, por isso mesmo, nestes tempos de retrocesso, vale a pena lembrar daqueles que, em nome do amor à liberdade, combateram a censura.
Entre os entraves da liberdade de expressão estão, certamente, supostos imperativos morais, cujos dogmas encobrem, em regra, outros imperativos, em especial, os imperativos econômicos: (1) a lei seca em vigor nos Estados Unidos de 1920 a1933, de ordem moral, teve por suporte econômico o tráfico lucrativo de bebidas alcoólicas com o Canadá; (2) enquanto holandeses fumam skunk impunemente, milhares de brasileiros amargam penas absurdas em nome da proibição da maconha, outra proibição moralista, cuja função, em vez de combater o narcotráfico, parece incentivá-lo, colocando-o fora da lei, portanto, livre de quaisquer controles além da violência.
Tais imperativos morais, embora ancorados nas relações econômicas, pois derivam delas, nem sempre atingem diretamente o mercado financeiro envolvendo os comércios de bebidas, charutos ou cocaína; muitos desses preceitos ganham forma de religião – sempre há grupos puritanos nas comissões de frente das leis secas e das guerras contra as drogas –, incidindo-se, dessa maneira, explicitamente sobre os chamados bons costumes e criminalizando, por exemplo, a exibição pública de determinadas partes do corpo, o amor entre pessoas do mesmo sexo e, até mesmo, fazer sexo. Nessas circunstâncias, devido às correlações entre religião, moral, as proibições e a economia baseada em contrabandos e descaminhos, quaisquer refutações a um dos elementos dessa trama reflete nos demais; por consequência, as religiões se tornam intolerantes com outros cultos contrários a elas e capazes de se contrapor à imposição de dogmas bastante discutíveis.
Pois bem, o grupo de atores do filme de Bergman, ao promover com sua peça de teatro debates morais, de cunhos religiosos, termina detido para interrogatório por um juiz, no mínimo, desprezível. Tratando-se de crime inventado, as arbitrariedades do inquisidor tornam-se aviltantes; o infeliz juiz, entretanto, não consegue lidar com os atores, sucumbindo ao ritual encenado na peça, justamente, ao tentar censurá-lo.
O país da trama não é mencionado, tornando-se dessa maneira qualquer lugar em que juízes exercem arbitrariedades; no início do filme, apenas sabemos que três atores serão interrogados para averiguação de supostos crimes contra a moral e os costumes. Na montagem, intercalam-se os três interrogatórios com passagens das vidas dos atores, os quais, longe de serem pessoas excepcionais, expressam humanamente inseguranças e limitações, contrariamente ao juiz, alienado inclusive de si mesmo ao persistir com o inquérito. Os atores, isso fica claro, parecem interpretar outros papeis enquanto são interrogados, desestabilizando completamente o juiz, quem comete variados abusos, dos abusos de autoridade aos sexuais, chegando a assediar a atriz; o xeque-mate da trupe, entretanto, acontece na cena final quando, numa sessão exclusiva para o juiz, os atores encenam a peça proibida. Nesse momento, o filme é indescritível; quem assiste à encenação proibida deve participar dela, igualmente ao juiz, e vivenciá-la enquanto rito além do filme, pois o próprio filme torna-se o rito.
Afinal, que rito seria aquele? Nesse momento, para comentar o filme, eu preciso contar seu final; trata-se de um ritual pagão sobre a renovação da vida por meio do nascer do Sol, envolvendo o falo dos atores e os seios da atriz enquanto símbolos dessa renovação. Não há sexo explícito; os atores estão mascarados, ninguém chega a tocar no juiz, quem, acostumado ao ramerrão moralista, não consegue suportar a eficácia simbólica do rito, perecendo de ataque cardíaco fulminante.
Qual seria a explicação disso? Por que tal autoridade estaria fadada a se esvair diante de algo aparentemente inofensivo, isto é, louvar a renovação da vida? Para servir à burocracia sem se revoltar contra ela, tal serviçal deve estar completamente de acordo com suas normas, deliciando-se, em certa medida, com duas mediocridades: (1) a mediocridade do sistema, pois toda burocracia é ineficiente – ao administrar homens em vez de contabilizar coisas, toda burocracia está fadada ao fracasso, pois sua única função passa ser administrar privilégios –; (2) a própria mediocridade, pois enquanto agente repressor, o primeiro a ser reprimido é o burocrata, seja ele professor universitário ou juiz. Dessa forma, esse ser humano, para se tornar aviltante, apesar de aparentemente exaltado em meio aos demais burocratas, ele deve ter suas singularidades anuladas diante da própria burocracia e dos valores conservadores reproduzidos nela. Assim, se essa pessoa não suporta a mudança de uma vírgula em seus manuais, certamente não é fácil para ela entender outras formas de liberdade e, muito menos, inserir-se na grandeza do universo, expressa em todo nascer do Sol. Fazer poesia com a natureza já é algo grandioso; inserir-se em mistérios mediante rituais permeados de símbolos indecifráveis pode ser transcendental; no filme de Bergman, o infeliz burocrata, antes de infartar, busca se justificar com traumas pueris, que nada são diante do rito.
Todo filme de arte vai além de seu tempo e de suas fronteiras; ainda esta semana assisti novamente ao show de Peter Tosh gravado ao vivo no Greek Theater, Los Angeles, 1983, que me lembrou do rito encenado por Bergman. Na abertura do vídeo, há o nascer do Sol; ao som de aleluias, Peter Tosh entra em cena dançando, com um crucifixo na mão, ele canta reggae, prega a legalização da maconha, a emancipação dos negros e denuncia a violência policial, enfim, um rito repleto de palavras de ordem contra a repressão. Quantos juízes não quereriam enquadrar aquele ativista negro por ter fumado sua erva ou tomado em vão o nome de Deus? Quais desses dois últimos crimes são realmente crimes? Qual burocrata não se anularia entre os rastafari?
O filme “O rito” está completo no YouTube e, para quem gosta de reggae, o show de Peter Tosh também, neste endereço:
Por fim, com dois vídeos sobre a renovação da vida, luta contra repressão e pela liberdade de expressão, desejo aos companheiros feliz 2023.






