O “giro decolonial” é moda nas ciências sociais. O pensamento decolonial domina centros de pesquisa; universidades públicas e privadas; diversas imprensas sindicais; imprensa capitalista progressista; imprensa capitalista imperialista; movimentos sociais entre outros. O “giro decolonial” (como afirmam os adeptos desse pensamento) é moda por serem financiadas por grandes instituições de fomento e por ONGs. Com todo esse aparato, o resultado social é a formação de uma esquerda cirandeira.
Dito isso, em se tratando de uma coluna, polemizaremos somente com a posição política reacionária e contrarrevolucionária do pensamento decolonial, não com conceitos e teorias abstratas. Os intelectuais desse pensamento dominante costumam trabalhar com jogos de palavras. Segundo eles haveria diferença entre “colonialismo e colonialidade” e existem debates, congressos e uma disputa conceitual em torno de miudezas que visam expressar a defesa do identitarismo.
Retorno a esse tema após ter lido uma citação contida em artigo para exarar parecer científico. O autor mencionou o artigo Hacia un pluri-versalismo transmoderno decolonial, de Ramón Grosfoguel. O que me chamou a atenção foi o franco ataque ao marxismo. De acordo com Grosfoguel:
Marx participa do racismo epistêmico em que há apenas uma epistemologia capaz de universalidade e esta só pode ser a tradição ocidental. Em Marx, no universalismo epistêmico de segundo tipo, o sujeito da enunciação permanece oculto, camuflado, oculto sob um novo universal abstrato que não é mais o “homem”, “o sujeito transcendental”, “o eu”, mas “o proletariado” e o seu projeto político universal é o “comunismo”. Assim, o projeto comunista no século XX foi da esquerda mais um desígnio global imperial/colonial que sob o império soviético tentou exportar para o resto do mundo o universal abstrato do “comunismo” como “a solução” para os problemas planetários. (GROSFOGUEL, 2008. p.9).
O autor, importante referência decolonial, demonstra duas características textuais, a primeira é o profundo desconhecimento do marxismo, pois o marxismo é uma ciência que parte das relações sociais de produção e de condições concretas da sociedade para análise. A União Soviética não é projeto do comunismo, mas uma forma de organização jurídica para o desenvolvimento do modo de produção, que não avançou após a morte de Lênin e a política burocrática do stalinismo.
Segundo problema textual, atribuir ao marxismo como um produto “ocidental”, enquanto na realidade, o marxismo é uma ciência construída a partir da prática do proletariado em suas lutas contra os regimes políticos opressores em todo o mundo. A própria União Soviética é mais asiática que europeia, e o marxismo foi lido e com diversas tentativas de aplicação na sua totalidade em diversos países asiáticos, africanos. Podemos dizer que o autor em tela representa a forma acabada da desonestidade intelectual que é o pensamento decolonial. Como o autor pode tirar a ideia de que Marx participa do “racismo sistêmico”? Eis a origem do “giro decolonial”, mentir sobre o pensamento revolucionário como sendo “imperial” e “racista”, sendo que Marx denunciou o racismo em O Capital. De acordo com Marx “O trabalho de pele branca não se pode emancipar onde o de pele negra é estigmatizado”. Sem contar os diversos marxistas que trabalharam com o tema do racismo.
Grosfoguel avança na análise antimarxista:
É então uma filosofia onde o sujeito epistêmico não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, linguagem ou localização epistêmica em nenhuma relação de poder e produz a verdade a partir de um monólogo interno consigo mesmo sem relação com ninguém fora dele. Sim. Ou seja, é uma filosofia surda, sem rosto e sem a força da gravidade. O sujeito sem rosto flutua pelos céus sem ser determinado por nada nem por ninguém (GROSFOGUEL, 2008).
Aqui está o pulo do gato do “giro decolonial”, convencer seus interlocutores sobre uma suposta surdez da ciência marxista, como se fosse desprovida de compreender a dialética, a própria natureza do marxismo. Aqui, Grosfoguel escancara o propósito decolonial, que é fragmentar os trabalhadores a partir de uma coação sentimentalista: é a ‘sexualidade’, ‘gênero’, ‘linguagem’ etc. Fica claro que o objetivo da ONU, quando expandiu essa ideologia decolonial com o sociólogo peruano Aníbal Quijano; a pedagoga da Catherine Walsh; o sociólogo Immanuel Wallerstein; o filósofo Nelson Maldonado-Torres; o semiólogo Walter Mignolo; o sociólogo Ramón Grosfoguel; o poeta e dramaturgo Aimé Césaire e o psiquiatra martiniquense Frantz Fanon.
O identitarismo e a teoria do “racismo estrutural” são filhos do imperialismo, que sob o rótulo de “disputa epistemológica” contra o marxismo, pretendeu, na realidade, ser uma política contrarrevolucionária, por isso a ideia de fragmentar o pensamento revolucionário, que poderia de uma só vez acabar com toda a opressão, não somente “economicista”, como dizem os decolonialistas, mas sob uma transformação profunda da sociedade.
Como teoria do campo cultural, ela cumpre esse papel de “sensibilizar” pessoas para seus problemas mais aparentes (e de superfície), daí seu grande eco na imprensa capitalista; junto às instituições de pesquisa e até mesmo sindicatos e movimentos sociais. O pensamento decolonial cumpre seu papel contrarrevolucionário, assim como o desenvolvimentismo de Prebisch no campo econômico e outras doutrinas criadas nos laboratórios da ONU.
Por fim, cabe a nós alertar sobre essa armadilha decolonial, recusando o identitarismo, alertando a esquerda de que esse pensamento não é transformador sequer para o ‘reformismo’, mas uma forma de impedir o desenvolvimento da luta dos trabalhadores a partir de sua fragmentação. Dividir os trabalhadores para reinar é o mote, o objetivo central dos decolonialistas. Para determinar se a categoria “ocidental” e de “classe trabalhadora” é adequada é diversionista a divagação sobre a aparência da coisa, mas seria útil avançar sobre as relações sociais de produção; do mesmo modo, pouco importa a forma que o capitalismo assume, pois o lucro será o modo de explorar a vida, o trabalhador.
Referência
GROSFOGUEL, RAMON. Hacia un pluri-versalismo transmoderno decolonial. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 199-216, Dec. 2008. Disponível em <http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-24892008000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 02 jan. 2023.
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