Previous slide
Next slide

Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Cinema

O cinema de terror mexicano

O México não se reduz a palhaços do imperialismo

O romance de aventuras do início do século XX, “O mundo perdido”, lançado em 1912, de Arthur Conan Doyle, o mesmo autor das célebres aventuras de Sherlock Holmes, teve várias versões cinematográficas, entre elas, aquela de 1960, com direção de Irwin Allen, quem concebeu algumas das famosas séries de televisão na mesma década, tais quais “Perdidos no espaço”, “Túnel do tempo”, “Terra de gigantes”, marcadas pelo anticomunismo. Não surpreende, portanto, que nos filmes para o cinema do mesmo diretor se encaminhassem, senão a mesma ideologia conservadora dos seriados, preconceitos semelhantes em relação aos países explorados pelos anticomunistas do imperialismo. Dessa maneira, na versão de Irwin Allen do romance de Conan Doyle, o mundo dos dinossauros ainda existe na Floresta Amazônica, nisso ele segue o romance, mas não faltam brasileiros falando espanhol em vez de português, violeiros cantando boleros no lugar de música brasileira, um mexicano corrupto e trapalhão em meio a ingleses cuja nobreza transcende eventuais falhas de caráter.

Existe humor no México? Sem dúvida, existe sim; certamente, muitos leitores concordam comigo que o artista mexicano Roberto Gómez Bolaños, o criador e intérprete do Chaves e do Chapolin Colorado, está entre os maiores comediantes do mundo. Quais seriam, contudo, as principais diferenças entre a arte nobre de Bolaños e a caricatura de péssimo gosto de Irwin Allen e seus palhaços do imperialismo falando espanhol excessivamente cantado ou outras imagens depreciativas, por exemplo, personagens indianas falando inglês com sotaque e fazendo papéis de criados pouco inteligentes, italianos falando inglês com sotaque gesticulando exageradamente e fazendo papéis de bandidos etc.?

A diferença é simples; do ponto de vista dos porta-vozes do imperialismo, os latinos, africanos, indianos, russos, asiáticos e imigrantes europeus são povos inferiores, portanto, somente lhes cabem os papeis de palhaços tristes ou foras da lei, no caso das mulheres, de prostitutas, seja na política, seja no cinema ou outras formas de arte. Dessa maneira, Bolaños é um gênio da comédia e Irwin Allen, outro palhaço do imperialismo.

O cinema e as demais artes, sob o capitalismo e a ditatura da burguesia, transformam-se em mercadorias, logo, se o cinema é arte, ele também faz parte da indústria cultural e, enquanto produto, boa parte dos filmes é regida por parâmetros mercantis, capazes de encaminhar modelos rígidos de produção, tais quais o dito star system, composto por pessoas antes fotogênicas que propriamente atores talentosos; por narrativas padronizadas, no caso, o percurso do herói segundo Joseph Campbell – há livros ensinando a fazer roteiros baseados na sua obra “O herói de mil faces”, por exemplo, “A jornada do escritor”, do roteirista e funcionário da indústria cinematográfica Christopher Vogler –; por escolas de arte dramática estandardizadas; por figuras estereotipadas, em geral, com características depreciativas, de mexicanos, brasileiros, chineses etc., quando de se trata de nacionalidades, ou de negros, mulheres, gays, lésbicas etc., quando se trata de minorias sociais.

Pois bem, para refletir sobre os danos causados pelo capitalismo à criatividade artística, vale a pena escolher uma forma de arte e um gênero específico, por exemplo, o cinema de terror, para verificar quanto mexicanos, italianos, franceses, japoneses etc. podem se distanciar do star system e do mito do herói. Sem pretender fazer propaganda de estabelecimentos comerciais, a produtora brasileira de DVDs Versátil lançou no mercado várias coleções de filmes de terror de diversos países, entre eles, o terror mexicano, que me surpreendeu.

Não conhecia, até pouco tempo, o cinema de terror feito no México – e ainda não conheço, tenho apenas primeiras impressões bastante positivas –; não foi difícil, porém, verificar o enfoque dos temas ser bastante singular. Para incentivar o leitor a procurar pela arte cinematográfica mexicana, comentarei brevemente três filmes, isto é, (1) “O esqueleto da senhora Morales”, 1960, de Rogelio González; (2) “Veneno para fadas”, 1986, de Carlos Henrique Taboada; (3) “Satânico pandemonium”, 1975, de Gilberto Martínez.

O primeiro filme é genial, com atuações brilhantes de Arturo de Córdova e Amparo Rivelles, vivendo os papeis do senhor e da senhora Morales, um casal em sérios conflitos conjugais. O senhor Morales é pessoa simpática, querida pelos amigos, crianças e cachorros do bairro, entretanto, a senhora Morales insiste em difamar o marido, chegando a se ferir de propósito para acusá-lo de violência doméstica diante do padre e outras autoridades locais.

Entre as muitas qualidades do filme, dois aspectos, pelo menos, chamam atenção. Devido aos abusos constantes da senhora Morales, o marido, valendo-se dos conhecimentos de taxidermia, sua profissão, termina assassinando a esposa, entretanto, mesmo imerso na repressão doméstica, o senhor Morales sente imensa atração física por ela, cujo moralismo impede de ser feliz no casamento. Tal sensualidade se justifica pois, apesar de idosos, os cônjuges ainda são bastante bonitos, a escolha dos atores levou isso em consideração; principalmente a senhora Morales, encarnada por Amparo Rivelles, quem, na juventude, foi de dona de notável beleza. Além do sexo entre os idosos, o filme aborda a polêmica entre o México do passado, representado por padres corruptos e vizinhas alcoviteiras, e o do futuro, expresso na paixão do senhor Morales pela fotografia e por sua admiração às habitações contemporâneas, queixando-se constantemente de morar numa casa velha, escolhida pela esposa, em vez de viver com tranquilidade em apartamentos modernos.

No segundo filme “Veneno para fadas”, a menina Verônica vive a fantasia de ser poderosa e malvada bruxa; com a chegada na escola da nova aluna Flávia, a imaginação de Verônica se acentua e ambas desenvolvem uma relação abusiva, na qual Flávia, enganada pela retórica mórbida da amiga, passa a ser ameaçada. Flávia é relativamente rica, vive em harmonia com os pais; Verônica, contrariamente, é órfã, morando com a avó, já bastante senil, e a governanta; a luta de classes não tarda a se expressar entre as duas, com Verônica valendo-se da ingenuidade de Flávia e de supostos poderes sobrenaturais. O final da trama é bastante trágico, não estragarei a fruição do leitor interessado em assistir ao filme, mas vela a pena fazer, pelo menos, dois comentários: (1) centrado no imaginário das duas meninas, o diretor lançou mão de não mostrar em momento algum a face dos adultos, causando interessante efeito visual na expressão da obra ao separar, na tela, os dois universos tematizados, isto é, a suposta realidade dos maiores de idade e os modos dela se insinuar na vida das crianças; (2) a atração de Verônica para o mundo dito do mal, do qual ela retira vida e poder, feito se fosse realmente bruxa. O público brasileiro, certamente, reconhecerá a atriz Ana Patrícia Rojo, quem vive Verônica e representou, quando adulta, o papel de Penélope Linhares na famosa novela mexicana Maria do Bairro.

Por fim, um filme sobre freiras. Na arte cinematográfica, entre numerosos gêneros exploitation, há o nunsploitation, cujo tema é o mundo das freiras e o cotidiano dos conventos, sendo produzidos no mundo todo, da Europa ao Japão. Não se trata aqui de analisar o fenômeno do cinema exploitation e suas ramificações, dos filmes de luta e terror aos chamados filmes de estrada, filmes de ação afirmativa negra etc.; para compreender “Satânico pandemonium”, basta saber que os filmes de freira, ao priorizar a vida nos conventos, termina tematizando, quase sempre, o sexo sob o suposto celibato clerical, seja com padres, seja entre a próprias irmãs; a presença do diabo, evidentemente, motivando exorcismos violentos; consequentemente, surgem as torturas da Santa Inquisição, as quais se tornam pretexto para expor as freiras nuas, vítimas dos verdugos e seus tormentos. “Satânico pandemonium” não é exceção aos temas; nele, a belíssima Cecília Pezet, quem vive a irmã Maria, tentada e seduzida pelo próprio Lúcifer, alicia camponeses adolescentes, chegando a transformar o convento em verdadeiro palco da gula e da luxúria, para, antes de ceder totalmente ao pecado, ser ameaçada com os tormentos da inquisição, imaginando-se nua sob intensas torturas nas cenas próximas do desfecho.

O filme, embora siga as coerções do gênero nunsploitation, complexifica-o em, pelo menos, três aspectos: (1) as cenas não se resumem a simples referências às personagens em seus tempos e espaços, pois o diretor e o roteirista cuidaram de semear símbolos religiosos ao longo do filme – em uma das cenas, quando Lúcifer tenta a irmã Maria, ele oferece a ela uma maçã, remetendo às tentações da serpente e ao pecado original, ao mesmo tempo em que um cordeirinho, símbolo do Cristo e da inocência, foge dos dois, perdendo-se na paisagem –; (2) há metáforas sexuais engenhosas – quando irmã Maria seduz o pastor adolescente, ela se descalça mergulhando os pés no riacho, nascendo da água feito se fosse Vênus, enquanto ele, pescando, coloca a vara entre as pernas, dando forma a um símbolo fálico –; (3) a dor, para irmã Maria, é paradoxal, pois, para alguém facilmente intimidada pelas torturas da inquisição, não faltam oportunidades para se autoflagelar com cilício ao redor do ventre e chicotas nos seios e nas costas.

 As películas, no original em língua espanhola, exceto “Veneno para fadas”, estão completas no Youtube nestes endereços:

(1) O esqueleto da senhora Morales:

https://www.youtube.com/watch?v=XvCOQlA0PwA

(2) Satânico pandemonium:

https://www.youtube.com/watch?v=iNMm54yfrwo

Por fim, desejo ao leitor duas excelentes sessões de cinema.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.