Uma matéria publicada no sítio Revista Movimento, página da tendência do PSOL, Movimento Esquerda Socialista (MES), de Luciana Genro e Sâmia Bomfim, com o título ‘O insuportável maniqueísmo da esquerda ‘anti-imperialista’”, procura polemizar com os setores que defendem os países governados pelo nacionalismo burguês em sua luta contra a opressão do imperialismo.
A polêmica é mais uma prova de que esses grupos estão, conscientemente ou não, se alinhando à política do imperialismo e servindo de linha auxiliar da burguesia sanguinária de países como EUA e França para a campanha contra os países atrasados por eles esmagados.
A matéria é escrita pelo professor universitário norte-americano, William Robinson, e sua versão em português veio do sítio Esquerda Net. Logo no começo, Robinson se sai com uma tentativa de citação de autoridade: “O socialista alemão August Bebel comentou em dado momento que o anti-semitismo é o “socialismo dos tolos” porque os anti-semitas reconheciam a exploração capitalista apenas se o explorador fosse judeu mas que fechavam os olhos à exploração que emanava de outros quadrantes. […] esse socialismo dos tolos foi ressuscitado por uma esquerda […] “anti-imperialista” que condena a exploração e a repressão capitalista em todo o mundo quando praticada pelos EUA e outras potências ocidentais […] mas fecha os olhos ou até mesmo defende Estados repressivos, autoritários e ditatoriais simplesmente porque esses Estados enfrentam a hostilidade de Washington”.
O autor, apesar de citar o grande líder da social-democracia alemã, não possui um raciocínio marxista e cria um sofisma: a esquerda “anti-imperialista” (aspas utilizadas pelo próprio autor para, possivelmente, indicar que não existe efetivamente uma luta anti-imperialista) seria contra a exploração levada adiante pelo bloco imperialista, mas não se coloca contra a exploração capitalista de outros países capitalistas, como Rússia e China. Primeiramente, isso não é fato. Se o autor se refere à política como a do PCO quando trata da esquerda anti-imperialista, é preciso deixar claro que o Partido se coloca contra a exploração da classe operária em todos os países, mas não é esse debate que está presente na discussão atual.
A questão é que o autor não considera que existem dois tipos de capitalismo: o capitalismo “normal” e o imperialismo, que é algo totalmente diferente. O capitalismo foi uma política progressista em seu período inicial. Ainda que tenha colonizado diversos países e reprimido populações ao redor do mundo, ele levava progresso para esses outros países. Foi isso o que possibilitou que as nações se desenvolvessem e é isso o que leva o mundo mais próximo do socialismo. Quem diz isso não somos nós, mas Marx, Engels e todos os marxistas.
O imperialismo, no entanto, é uma política totalmente reacionária. O autor quer demonstrar que o capitalismo é igualmente opressor em qualquer país. Ao se referir aos países do BRICS, ele diz “(…) os capitalistas e os Estados do BRICS estão tão comprometidos com o controle e a exploração das classes populares e trabalhadoras globais quanto as suas contrapartes do Norte”. Isso não é fato sob nenhum aspecto que se possa examinar a questão.
O capitalismo normal, ou até semi-capitalismo no caso de alguns países atrasados, não tem a capacidade destrutiva do imperialismo de realizar uma guerra em que morrem centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo. Ele não tem a força ditatorial e totalitária, capaz de oprimir e arrancar o couro da população de todos os países. O imperialismo que recentemente invadiu o Iraque deixou um rastro de cerca de 1 milhão de mortos, reduzindo o país às ruínas.
O autor procura citar alguns casos em que a China realiza investimentos e extração de recursos naturais em outros países atrasados. Ele dá como exemplo a cooperação entre China e Peru em uma mina de extração de cobre: “As comunidades indígenas da província peruana de Apurímac travaram lutas sangrentas nos últimos anos contra a mina de cobre a céu aberto Las Bambas, de propriedade e operação chinesa, uma das maiores do mundo, que deixou dezenas de mortos e feridos. De facto, o estado peruano vende legalmente serviços de policiamento às empresas mineiras, permitindo que a MMG da China compre força física da polícia para promover a extração de cobre por meios violentos”.
É fato que a exploração capitalista de uma mina de cobre possa ser algo que leve à opressão da população indígena local e à exploração da mão-de-obra da classe operária peruana, finalmente, é um empreendimento capitalista e o capitalismo sempre funcionou dessa forma. O fato de a China ter negócios no Peru não os torna um país imperialista por um motivo muito simples: esses negócios se dão sobre a base de uma negociação normal. Ou seja, é um empreendimento vantajoso tanto para os chineses quanto para os peruanos.
A negociação entre um país imperialista e um país atrasado funciona mais da forma como funcionava a reação entre França e Níger. O governo francês impôs que o Níger tinha que vender toda a sua matéria-prima para a França, primeiramente. Caso determinado negócio não interessasse aos franceses, só aí ele poderia procurar vender para outros países. No caso do urânio, uma das principais riquezas exploradas pelos nigerenses, a França adquiria o urânio do Níger (extraído através do trabalho dos africanos) e devolvia para o Níger apenas 2% de seu retorno. É como no Brasil em que os bancos corrompem o governo e fazem com que ele privatize a Vale do Rio Doce por um milésimo de seu valor.
Negociações dessa natureza não ocorrem por uma falta de tino comercial dos governos nigerense e brasileiro, mas porque o imperialismo tem condições militares e econômicas de impôr aos países atrasados um esquema de negócios onde ele leva tudo e não deixa nada para o outro lado. É a mesma diferença que há entre a negociação que se faz com o dono de uma mercearia – o qual recebe uma parte de seu dinheiro e te vende um saco de arroz – e um ladrão, que toma a sua carteira e todo seu dinheiro e não te dá nada em troca. O ladrão só pode fazê-lo porque tem uma arma apontada para a sua cabeça.
O autor conclui com a seguinte provocação infantil: “(…) a esquerda ‘anti-imperialista’ insiste que existe um único inimigo, os EUA e os seus aliados. Esta é a história maniqueísta de ‘o Ocidente e o resto’. Esta narrativa metafísica da Guerra das Estrelas sobre a luta virtuosa contra o singular Império do Mal acaba por legitimar a invasão russa da Ucrânia. E, tal como na Guerra das Estrelas, torna-se difícil distinguir a tagarelice fantasiosa de um mundo de fantasia da tagarelice da esquerda ‘anti-imperialista’”.
Sobre isso, é preciso esclarecer: o capitalismo é, evidentemente, inimigo de toda a classe trabalhadora. Todos os estados e empresas capitalistas exploram a mão-de-obra dos trabalhadores e são seus inimigos. Mas isso é uma maneira simplificada de ver o mundo, há outros conflitos em jogo. Existe o conflito entre a burguesia de um país atrasado e a burguesia de um país imperialista, que a oprime e impede seu desenvolvimento.
O que se deve discutir, no caso em questão, é: em um conflito entre um país atrasado e um país imperialista, devemos ficar neutros? No caso da invasão ao Iraque, por exemplo, em que o país estava sendo vítima das bombas e tropas norte-americanas, que destruíam sistematicamente seu país, devemos ficar neutros ou apoiar o governo iraquiano? Não devemos ficar neutros. A classe operária iraquiana deve apoiar o governo de seu país, ainda que de forma temporária, para derrotar o inimigo maior, que é o imperialismo que esmaga e massacra seu país de conjunto.
Não existe neutralidade na luta de classes. No caso da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, Lenin não apresentava uma posição neutra, ele era contra os dois blocos envolvidos na guerra, porque ambos eram blocos imperialistas disputando o domínio do planeta. E, no caso de Lenin, ela era uma posição real, com conteúdo: contra a guerra a revolução proletária. Seu prognóstico era de que a revolução viria da guerra, e foi exatamente o que ocorreu no caso da Rússia.
No caso do autor norte-americano traduzido pelo MES, sua posição de neutralidade travestida de hiper-revolucionária, não possui nenhum conteúdo real, nenhuma ação que deriva dela. Essa posição conduz o grupo, inevitavelmente, a apoiar o lado mais forte do conflito, ou seja, é um apoio disfarçado ao imperialismo. Em última análise, se fala em maniqueísmo ao atacar a esquerda anti-imperialista, mas o verdadeiro maniqueísmo está na posição deles, que não enxergam os vários níveis e terrenos da luta de classes na sociedade.