Recente matéria da Folha de São Paulo noticiou o uso de linguagem neutra no site da EBC: “Agência Brasil, do governo federal, publica texto com linguagem neutra”. Leitores incautos poderiam imaginar que o jornal, sempre tão disposto a abraçar a pauta identitária, fosse tecer loas à iniciativa do governo Lula. Ledo engano, como diria minha avó.
No parágrafo inicial, num português que pega no tranco, o repórter tenta ser didático: “A Agência Brasil, vinculada à EBC (Empresa Brasil de Comunicação), publicou em seu portal uma reportagem que utilizada [sic] linguagem neutra —empregada com a intenção de incluir pessoas não binárias, de gênero fluído [sic] ou transgêneros que não se enquadram no padrão de gêneros”. Esse tipo de definição reforça a propaganda identitária de que a “inclusão” das pessoas na sociedade depende do uso de um sistema linguístico alternativo. Para o jornalista, isso é fato, portanto ele deveria estar aplaudindo a Agência Brasil, que teria feito um gesto muito positivo de valorização da população LGBT (e outras letras e sinais).
A intenção desse tipo de matéria, no entanto, aparece nos detalhes. Por exemplo, sem articulação com nenhuma outra ideia, o autor do texto joga uma frase com dois links: “O uso da linguagem neutra, por exemplo, é alvo de críticas tanto de alguns gramáticos como do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores”. Jair Bolsonaro todos sabemos quem é, mas, ainda assim, vamos ver aonde nos leva o link e logo descobrimos uma reportagem sobre os vetos de Bolsonaro que “dificultam punição de militares e parlamentares golpistas” (esse é Bolsonaro); quanto a “alguns gramáticos”, ficamos sabendo que se trata de Evanildo Bechara, que, sem lermos a reportagem, imaginamos ser um crítico dessa linguagem. Quem se debruçar sobre o texto, no entanto, verá que o gramático, um quase centenário homem de 96 anos de idade, autor de vasta obra sobre a língua portuguesa e reconhecido como um dos maiores conhecedores do idioma de Camões, basicamente achou graça quando lhe perguntaram sobre o tema, levando a coisa no bom humor, e não fez nenhum tipo de análise.
Fato é que, ao juntar Evanildo Bechara, um gramático (não “alguns”), a Jair Bolsonaro e seus apoiadores, o jornalista induz o leitor a imaginar que todo o restante da população está convicto de que essa linguagem é a melhor, se não a única, forma de “incluir” na sociedade pessoas que não se sentem nem homens nem mulheres. Além disso, induz o leitor a colocar o gramático no grupo de “apoiadores de Jair Bolsonaro”.
O texto cria uma espécie de armadilha: seu tom de fofoca atiça os bolsonaristas, que estão sempre a postos quando se trata de ridicularizar o governo do PT. Críticas ao PT, independentemente de sua origem, são muito bem-vindas no jornal da “terceira via”. Por outro lado, os leitores que simpatizam com o PT se veem obrigados a defender a linguagem neutra para não serem confundidos com os “golpistas” e “arruaceiros” que destruíram os prédios dos três poderes.
Diga-se, de passagem, que nem a reportagem da EBC nem a da Folha conseguem, de fato, usar essa linguagem. Uma hora a pessoa é deputade, depois é deputada, outra hora é candidato, uma confusão só. O repórter da Folha, tropicando de uma só vez na concordância e no identitarismo, diz o seguinte: “A reportagem da Agência Brasil informou que 79 candidatos transexuais e travestis disputaram vaga na Câmara e em Assembleias estaduais em 2022. Do total, quatro foram eleitos (duas para o Congresso e duas para assembleias estaduais), além de uma deputada estadual intersexo”. Se transexuais e travestis são tratados como “candidatos”, no masculino, dos quais “quatro foram eleitos”, por que, ao retomá-los, usou o numeral no feminino (duas)? Uma consulta a uma das gramáticas do professor Evanildo Bechara poderia ajudar o redator, que ficaria sabendo que “transexuais e travestis” são comuns de dois gêneros, donde ser possível chamar as moças de candidatas. Se, no entanto, consultar um manual de identitarês, vai aprender a usar “candidates eleites” (a forma do numeral dois/duas em identitarês é mistério que este escriba ainda não desvendou). Finalmente, ao ser humano intersexo foi atribuída a palavra “deputada”, no feminino. Pode?
Outro link da matéria sai da expressão “linguagem neutra” e chega a uma web story da própria Folha, em que uma certa Paula Drummond, editora de livros juvenis da Globo, dá o veredicto: “A língua serve à sociedade, não o contrário. Se existe uma demanda pelo gênero neutro, a gente tem que aprender a usar”. Simples assim. Língua agora é uma questão de demanda no supermercado identitário. Se assim é, a Folha, sempre tão moderna, deveria instituir a linguagem neutra na sua redação e aplaudir as iniciativas petistas nessa seara, mas, como bom representante dos “tucanos”, prefere ficar em cima do muro para poder atacar todos os lados de acordo com a conveniência.
Artigo publicado, originalmente, em 09 de fevereiro de 2023.