Já criticamos nesta coluna em mais de uma oportunidade a empolgação com que certos especuladores do mercado financeiro tratam o tema da “inteligência artificial”. Criticamos o próprio termo, que se tratado de forma mais precisa deveria chamar-se “aprendizagem de máquina” ou simplesmente modelo estatístico para os mais rigorosos. É possível que um dos motivos pelos quais haja tanta euforia em torno do tema seja a possibilidade de reduzir os salários de programadores muito bem pagos como eu, que fazem um trabalho relativamente simples, mas obscuro para a maioria da sociedade. Deixando de lado o egocentrismo, o mais provável é que após criptomoedas e metaverso, a inteligência artificial é o próximo mercado que irá absorver todo esse excesso de capital fictício nas mãos dos banqueiros internacionais, na esperança de que essa riqueza virtual cresça ainda mais.
Há aspectos bons do desenvolvimento de novos modelos de inteligência artificial como os geradores de texto e imagens que não param de se multiplicar. Deixando de lado o progresso tecnológico e o uso criativo dessa tecnologia – majoritariamente para a criação de memes -, há uma guerra sendo travada contra um dos aspectos mais nefastos do capitalismo em sua etapa imperialista: a propriedade intelectual.
Para aprender os padrões escondidos na obra humana até então, os modelos precisam, antes de mais nada, ter acesso a essa obra, coisa que muitos seres humanos não têm. Há livros, filmes, obras de arte e trabalhos científicos protegidos por barreiras financeiras – criminosas, na opinião deste colunista – que basicamente atuam como um freio ao desenvolvimento humano. São um freio, pois impedem a livre proliferação da cultura e da ciência, justamente os elementos que possibilitaram a evolução da nossa sociedade até o ponto em que nos encontramos.
As empresas por trás desses produtos envolvendo inteligência artificial, entre todas as coisas inescrupulosas que fizeram, fizeram algo nobre: violaram as legislações de propriedade intelectual e deram a seus modelos acesso a diversas obras que, se adquiridas, talvez custassem em seu conjunto mais do que o preço dos computadores usados para treinar os modelos. Dessa forma, o ChatGPT pode agora facilmente reproduzir um trabalho científico ou livro de ficção (ainda que com alguns erros) para qualquer pessoa que souber as palavras-chave corretas. Nesse caso, quem seria o responsável pela violação de direitos de propriedade intelectual? O prompter ou a empresa responsável pelo serviço?
A maioria dos juristas mundo afora avaliando casos como esse parecem convergir para a imputabilidade de empresas como a OpenAI. Há países como o Japão onde está sendo regulado o que pode ser oferecido aos modelos estatísticos para treinamento, mas a caixa de pandora já foi aberta. Engraçado que não houve grandes problemas para a burguesia enquanto os afetados eram programadores tendo seus programas plagiados ou artistas na mesma situação, com suas ilustrações sendo praticamente copiadas pelo DALL-E. O problema surgiu quando os lucros de alguém grande começaram a ser afetados. Surgiu quando os donos das propriedades intelectuais não poderiam mais dispor do aluguel que cobram pela posse de algo que muito provavelmente não é sua criação.
E se for possível criar um filme novo da Marvel com um mero prompt num modelo mais avançado que venha a existir daqui a 5 ou 10 anos? O caráter formulístico desses filmes os transforma em algo perfeito para um modelo estatístico detectar padrões e replicar, com pequenas alterações. E se o ChatGPT vazar segredos industriais, patentes, simplesmente porque ele adquiriu essas informações por um de seus usuários?
Essa é talvez a característica mais revolucionária desses modelos. Ao contrário da licença de software livre, que protegia a autoria do software e colocava empecilhos para empresas privadas que quisessem utilizá-lo para fins lucrativos, fechando o código livre. A inteligência artificial vai aonde a Fundação de Software Livre jamais pensou em ir e simplesmente demole o conceito de autoria. Ainda há uma intervenção humana, daquele que diz o que quer ao maquinário estatístico e tolera o tedioso processo de guiá-lo a algo próximo de sua visão original. Mas o produto final não é criação daquele indivíduo, é uma criação de toda a sociedade humana desde os tempos mais remotos até hoje.
Robinson Crusoe, a obra de Daniel Defoe, já abordara o tema. O náufrago, apesar de ter perdido todos os seus recursos, não encontrava-se nas mesma condições dos povos nativos da ilha tropical em que abarcara. Tinha atrás de si toda uma sociedade muito mais desenvolvida do que a dos nativos, fator que será determinante para sua sobrevivência no ambiente hostil. Talvez os modelos estatísticos que sustentam a inteligência artificial sejam a materialização desse desenvolvimento social, transformada em algo de fácil acesso. A pedra sobre a qual se erguerá uma sociedade sem autores, na qual tudo é uma produção social, coletiva.