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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Enem identitário

Enem identitário-decolonial

Prova requer interpretação de textos, cuja seleção segue a agenda do identitarismo

A bancada do agro no Congresso considerou enviesadas três das questões do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, que praticamente se transformou num substitutivo de muitos vestibulares. Somou-se aos críticos da prova – em particular, a Frente Parlamentar do Agro, que pleiteia a anulação das perguntas – o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT), que afirmou que teria errado as respostas. O mais provável é que o barulho fique por isso mesmo, pois a estratégia do exame como um todo é apresentar as questões na forma de interpretação de texto, de modo que a exigência objetiva é apenas a de que o participante demonstre saber ler.

A prova de linguagens e códigos – que ocupa o lugar das antigas provas de português e literatura – é basicamente uma avaliação da capacidade de ler e interpretar textos. Até aí, talvez não haja problema, se bem que o desprestígio das aulas de português não tem trazido bons frutos. Uma passada de olhos pelas questões do primeiro dia da prova, porém, mostra claramente a existência de uma espécie de agenda do “identitarismo decolonial”.

Como é sabido – e nem sempre apreciado –, os vestibulares costumam balizar o ensino médio.  Como o Enem vem ocupando o lugar de muitos vestibulares, aparentemente, seus elaboradores assumiram esse mesmo papel ao proceder à escolha dos textos e temas. Muitas das questões nem mesmo fazem menção aos recursos linguísticos, cujo conhecimento poderia ser cobrado em uma prova de linguagens. Importa ler um conjunto de textos que, de certa forma, instaura um novo cânone, do qual a tradição da literatura portuguesa, por exemplo, está totalmente excluída.

Para começar, nenhuma referência de autor anterior ao século XX, à exceção de Olavo Bilac, que comparece com um texto sobre a escravidão, e de Rui Barbosa, que surge tratando de Machado de Assis. Embora apareçam Mário de Andrade e Guimarães Rosa, o grosso da prova são textos de autores contemporâneos, como Maria Giulia Pinheiro, poetisa de 33 anos, que criou e coordena o Núcleo de Dramaturgia Feminista, a cearense Jarid Arraes, de 32, Adriana Lisboa, nascida em 1970, Roberta Estrela D’Alva, de 1978, que é atriz, pesquisadora, produtora cultural e poetisa, curadora do Rio Poetry Slam (que ocorre na Festa Literária das Periferias), ou Ana Martins Marques, cuja estreia literária se deu em 2009, com livro publicado pela Companhia das Letras.

É verdade que também comparece Lasar Segall, a propósito de obra censurada pelo nazismo. Conceição Evaristo e o “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior, não poderiam faltar. Lúcio Cardoso, João Alphonsus, J. J. Veiga e, é claro, Caetano Veloso também marcaram presença na prova – e Caetano também disse que teria errado a resposta da questão sobre suas canções.

Feminismo, denúncia de violência de gênero, comunidades negras do Amapá, artista goiano Wolney Fernandes, que vende seus trabalhos na internet/ Instagram, saxofonista Jurandy, de João Pessoa, que toca Ravel e Luiz Gonzaga, o poeta e educador social Baticum Proletário, que atua na periferia de Fortaleza com negros, o rapper indígena que tem clipe no site do Instituto Moreira Sales, os limites do potencial inclusivo da mulher transgênero nos Jogos Olímpicos em razão da “dependência  de características biológicas padronizadas”, a mudança do significado da palavra “casamento” no Dicionário Michaelis após petição pública (o dicionário substituiu a definição antiga “união legal entre homem e mulher” por “união legal entre pessoas”), esses foram tópicos abordados, sempre por meio da interpretação de textos cuidadosamente selecionados.

A Libras (língua brasileira de sinais) aparece para ilustrar variação linguística; nessa linha, também vai o texto do angolano Agualusa que menciona o livro “Volta para tua terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal”. A questão é um pretexto para o estudante responder que o preconceito dos portugueses contra o português do Brasil se “deve à existência de uma língua ideal que alguns falantes lusitanos creem ser a falada em Portugal”, tema que se insere no debate da “língua brasileira”, hoje feito nas universidades e na imprensa burguesa.

Também há questões sobre “povos originários”, como a do incêndio do Museu Nacional do Rio, em que se teriam perdido muitos rolos de gravações de línguas indígenas extintas, e a do discurso de Txai Suruí (indígena colunista da Folha) na COP-26. Esta última está na prova de conhecimentos gerais, na qual há questões sobre a opressão da mulher no Afeganistão depois que o Talibã assumiu o poder (“desrespeito à dignidade humana” é a resposta certa) e sobre antissemitismo, além de uma aparição quase simpática de Lord Rotschild, o presidente da Liga Sionista, quando da fundação de Israel – sendo a falência da mediação do conflito territorial atribuída à Inglaterra.

Paulo Freire e Machado de Assis também comparecem entre as questões de conhecimentos gerais, bem como a criação da Plataforma Ancestralidades, que vai contar permanentemente a história de negros invisibilizados, “figuras encobertas pela perspectiva histórica imposta pelos colonizadores da América”. Da leitura do texto se propõe uma questão, cuja resposta é “crítica ao eurocentrismo”.

Quem porventura não tenha simpatia pela agenda identitário-decolonial pode ficar um tanto irritado ao resolver essas questões, mas, de certa forma, o exame mostra a visão predominante na universidade hoje. Quem quiser entrar vai ter de encarar o identitarismo e o identitarês acadêmico.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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