Matéria de Fernando Horta, no Brasil 247, embora se intitule “Acessando Greenwald de um ponto de vista acadêmico”, passa boa parte do tempo tentando, como se diz no meio acadêmico, “desconstruir” o jornalista. É um artifício para que a abordagem ‘acadêmica’ fique mais convincente para quem se aventure a ler o artigo. Ao se apresentar como acadêmico, o articulista dá uma “carteirada”, usa um recurso de autoridade e coloca os leitores na defensiva.
O fundo do problema, e o pecado de Greenwald, foi sua crítica a Alexandre de Moraes. Esse ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que votou pela prisão de Lula e acabou favorecendo a eleição de Bolsonaro, passou a ser queridinho da esquerda pequeno-burguesa, e é pintado como caçador de fascistas, após ter colocado na cadeia meia dúzia de bolsonaristas irrelevantes.
Fernando Horta faz chacota de Glenn Greenwald que teria ficado ‘chocado’ com uma lista de canais bloqueados nas redes. “E não se pense que a lista cuidava de várias dezenas ou até centenas de bloqueios. Eram apenas cinco pessoas”. Para ele, é um problema de quantidade, não de qualidade. Vamos levar adiante, “de forma acadêmica”, a tese que poderia derivar desse absurdo que escreveu Horta: “Ainda bem que é só Assange que está preso e prestes a ser extraditado, pior se fossem centenas!”.
Em vez de denunciar o autoritarismo contra o Monark, que teve sua quarta rede social bloqueada, Horta justifica a arbitrariedade atacando o apresentador tratando-o como “jovem liberal apedeuta que fez fortuna demonstrando ignorância e despreparo”, “rei das idiotices”. O articulista mente quando diz que Monark tenha feito apologia ao nazismo. Tanto é assim que estão tentando, em um malabarismo jurídico, enquadrá-lo por racismo. Horta diz também que Monark incitou a violência, outra falsidade, pois o apresentador condenou os atos do dia 8. O que será que o acadêmico pensa dos militantes do MST e dos índios que já ocuparam Brasília em mais de uma ocasião?
Bem ‘acadêmico’
Como não pode se ater exclusivamente aos fatos, de que existe uma ditadura judiciária no Brasil, Fernando Horta passa a atacar Glenn Greenwald pessoalmente, chamando-o de “histérico”, “adorador-adulador da lava a jato”, “grilo falante”. Disse que “Greenwald, no meio da campanha para presidente nos EUA, atacou impiedosamente Biden e serviu de apoio a Trump”. O que revela que Horta apoia Biden, o sujeito que tramou a destruição do Iraque, o golpe contra Dilma, e está prestes a colocar o mundo em uma terceira guerra mundial em nome do grande capital financeiro e da indústria bélica. O “ataque”, diga-se, foi Greenwald ter revelado ligações perigosas de Hunter Biden (filho de Joe Biden) envolvido em negócios escusos na Ucrânia com desenvolvimento de armas biológicas, aquelas de destruição em massa. Parece, no entanto, que o melhor seria ter varrido esse detalhe para debaixo do tapete. Segundo ele, Greenwald deveria mentir para proteger Biden.
Quando tenta partir para a parte realmente ‘acadêmica’, Horta presume que “Greenwald é um liberal que aplica uma teoria antiga e desatualizada sobre a democracia como espinha dorsal da sua forma de compreender o mundo e incorre em vários erros metodológicos nesse processo, que ainda salpica com generosas porções de senso comum. E só”. A partir daí, tenta construir o seu castelo argumentativo.
Para Fernando Horta, Glenn Greenwald teria uma “interpretação economicista da democracia”, uma ideia dos anos 1960/70 e “segundo esta vertente, a democracia seria uma espécie de “livre mercado das ideias” (e esse termo foi largamente utilizado) em que cada cidadão – em tempo de eleição – escolhe livremente sobre os “produtos” que estão à disposição. A “moeda” de compra da democracia seria o voto e o “produto” que mais fosse adquirido pelos cidadãos seria então o melhor produto disponível e ganharia o direito de governar”. É até curioso ler isso, pois a maioria da esquerda no Brasil tem um verdadeiro fetiche pelo voto. Os adeptos do “fique em casa”, durante a pandemia de Covid-19, saíram da segurança de seus lares para buscar voto no corpo a corpo em 2018. Finda a eleição, voltaram todos para o aconchego de seus sofás. Quanta gente de ‘esquerda’ não defendeu Alckmin como vice de Lula porque isso ‘traria votos’? Ah, mas era por uma boa causa: “derrotar o fascismo”.
Continuando, “a mais plena democracia, seria aquela com maior número de “produtos” (ideias) à venda e à disposição dos eleitores que “livres e conscientes” poderiam escolher sem restrições. Essa perspectiva favorece economicamente o jornalismo pois eles seriam “publicitários” das ideias e suas funções seriam o de as “aclarar” para o público” (grifo nosso). Esse trecho destacado é particularmente interessante, pois Horta coloca de contrabando a ideia do favorecimento do jornalismo porque, surpresa! Glenn Greenwald atua como jornalista e, supostamente, “seu senso argentário [no sentido de dinheiro] é bastante adulado pela ideia de que o jornalismo não é uma ferramenta de uso político, mas um espaço de exercício autônomo de crítica que tem valor para o ‘livre mercado das ideias’”.
Como é bom ser ‘acadêmico’, pois a partir de uma suposição, no caso enviesada, se tira todas as conclusões. Pois Fernando Horta alega que “Greenwald se sente particularmente feliz por se ver como um freedom fighter [lutador pela liberdade] que trabalha para permitir a maior quantidade de “produtos” (ideias) para a “compra” por parte dos cidadãos. E um lutador pela mais sublime “democracia” que seria aquela em que todos livremente possam dizer o que querem. No fim, Greenwald acredita que a democracia é o reino da liberdade”.
O castelo de areia
Para refutar esse Greenwald que existe apenas em sua imaginação, Horta sustenta que “em primeiro lugar, essa abordagem [economicista] exige que os eleitores sejam “sujeitos racionais” e que “comprem” as “ideias” livres no mercado político a partir de um sentido funcional em um cálculo de custo-benefício. Para isso, é preciso que os eleitores tenham TODAS as informações sobre os “produtos” que estão comprando”. O que não pode ocorrer em nenhum sistema, pois não pode existir, fora da religião, um ser que tenha TODAS as informações. E, “além disso, os produtos precisam estar sendo oferecidos de forma igual (em termos de constância, acessibilidade e abrangência) a todos, o que – sabemos – também não ocorre. Isso quebra a ideia de “livre mercado das ideais” e, por óbvio”. Então, baseado em hipótese que não demonstrou, Horta conclui que “Greenwald está errado em sua forma de compreender a democracia”.
Para justificar a censura de Alexandre de Moraes, Horta diz que é um erro “atribuir a todo “produto” (ideia) o mesmo direito de existir”. E aqui vem a questão: quem regula quais ideias devem ou não existir? O Estado. Ocorre que o Estado não é neutro. Aqui, Horta revela sua completa incompreensão do básico do marxismo, ou do pensamento de esquerda, pois afirma que “uma das funções primordiais da organização do Estado é a proteção”. Só se for a proteção dos interesses da burguesia. O Estado é uma máquina de dominação que surgiu quando a sociedade se dividiu em classes. Para piorar, Fernando Horta afirma que “a visão purista de “liberdade de expressão” simplesmente não pode prosperar” (grifo nosso).
Grand Finale
Para terminar sua abordagem ‘acadêmica’ sobre Glenn Greenwald, Fernando Horta afirma que o jornalista “opera uma visão rasa e de senso comum da democracia, que usa como eixo central uma teoria economicista da política e ainda erra ao acreditar que metodologicamente (no mundo real) o conceito de “liberdade” possa ser operacionalizado como “livre acesso” ao “livre mercado das ideias””.
Finalmente, Horta recorre a Hobbes que, segundo ele, teria demonstrado que “num sistema em que a liberdade é máxima, a violência também é máxima”.
Recorrer a Hobbes, um reacionário e defensor do absolutismo, para refutar a liberdade de expressão e defender uma democracia ‘pragmática’ é, no mínimo, medalha de ouro na competição dos saltos mortais das ideias mirabolantes do academicismo. Se não se pode aceitar que exista uma ‘liberdade máxima’, muito menos se pode aceitar que dessa impossibilidade se derive quaisquer consequências.
A aparição de Hobbes no texto é quase um ato falho de Horta, e esta já vinha sendo preparada quando o autor questionou se os eleitores poderiam vir a ser ‘sujeitos racionais’; quando defendeu que nem todas as ideias têm ‘o mesmo direito de existir’ e que aqueles que acreditam na liberdade de expressão têm uma ‘visão purista’ da democracia.
Thomas Hobbes, que morreu no final de 1679, século XVII, é famoso por considerar o homem como sendo o lobo do homem e um ser essencialmente mau. Se deixados livres, naquilo que chama de ‘estado de natureza’, os seres humanos viveriam em guerra constante. Para conquistar a paz, o homem teria que, em um contrato social, abrir mão de sua liberdade e entregá-la ao Estado em troca de proteção. Hobbes acreditava que a monarquia absoluta seria o melhor tipo de governo para garantir o convívio social.
Essa visão de Hobbes explica o porquê de ter feito parte dos contrarrevolucionários da Revolução de 1642, liderada por Oliver Cromwel, que foi a instauração de um governo popular na Inglaterra.
Fernando Horta inventa uma teoria democrática para atacar Greenwald, mas mal consegue disfarçar a sua vocação de fortalecer o judiciário. A instituição que tem sido a principal arma para se aplicar golpes de Estado na Amériaca Latina e no mundo. Em resumo, o que estado sendo defendido por Horta é o próprio imperialismo que precisa impedir que o Estado seja contestado, daí o cerceamento da liberdade de expressão.
O marxismo e a liberdade de expressão
Horta é hobbesiano, se fosse de esquerda, conforme se pinta, defenderia a liberdade de expressão. Marx, por exemplo, contra aqueles que defendiam a censura seria um “mal menor do que os excessos por parte da imprensa”, refutou dizendo que se trataria de um “paradoxo ilógico considerar a censura como base para melhorar a imprensa”. Disse ainda que o “o desenvolvimento espiritual da Alemanha avançou não devido à censura, mas apesar dela. A imprensa sob a censura se torna atrofiada e miserável”.
Além de Marx, podemos citar Rosa Luxemburgo que escreveu em seu livro A Igreja e o Socialismo que “os social-democratas no nosso próprio país, assim como no mundo, defendem o princípio de que a consciência e as opiniões das pessoas são coisas sagradas e intocáveis”.
Lênin, no Programa do Partido Social-Democrata Russo, defendeu a “Liberdade ilimitada de consciência, palavra, imprensa, reunião, greve e associação”
Essa matéria de Horta se soma a uma cascata de ataques contra Glenn Greenwald que cometeu a heresia de questionar a enorme quantidade de poder nas mãos de um único juiz, e em um país que conheceu os estragados da Operação Lava-jato.
A esquerda pequeno-burguesa entrou em uma Cruzada na defesa das ‘instituições democráticas’ e de fortalecimento do Estado burguês. Faltaria nos explicar, se fosse possível, como um juiz de uma instituição que pisoteia constantemente a Constituição pode ser considerado um defensor da democracia.
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última alteração em 19/01/2022 (08h45)