Povoa a mentalidade do esquerdista médio de hoje a tese da “democracia contra o fascismo”. Vimos, por exemplo, um amplo setor da esquerda gaúcha apoiar a candidatura do golpista tucano Eduardo Leite contra o bolsonarista Onyx Lorenzoni, com o intuito de preservar a “democracia”. De maneira semelhante, também vimos diversos setores da esquerda comemorarem a vitória do democrata (só em afiliação partidário) Joe Biden contra Trump, representante da extrema-direita norte-americana.
A primeira coisa a se dizer acerca do tema é seu caráter completamente ilusório. A falsa dicotomia “democracia vs fascismo” tem origens na Segunda Guerra Mundial, em que o imperialismo “democrático” triunfou sobre o imperialismo “fascista”. À exceção da guerra no leste da Europa, tratava-se de uma guerra entre imperialismos concorrentes para a partilha do mundo. No entanto, como era de praxe na política ultra oportunista levada adiante pela burocracia soviética, passou-se a defender a ideia de que o mundo havia mergulhada numa época em que dominaria a democracia, em que o fascismo fora derrotado etc. Vejamos o que de fato aconteceu, mas antes estabeleçamos alguns fatos “básicos”.
Nas regiões do mundo não afetadas diretamente pelas barbaridades da guerra, a dominação imperialista enfraqueceu. Ora, com os esforços de guerra do capital imperialista, abriu-se espaço para o desenvolvimento econômico e uma relativa independência política em diversos países atrasados; donde o aparecimento de diversos governos nacionalistas na América Latina e no Oriente Médio no período. Terminada a “guerra interimperialista”, no entanto, colocou-se rapidamente na ordem do dia a retomada do controle por parte dos países imperialista, particularmente os vencedores da guerra, ou seja, os “democráticos”.
Em geral, o nível de desenvolvimento econômico em países de capitalismo atrasado não suporta um governo verdadeiramente (no sentido burguês) democrático. O resultado deste fato é que a maioria dos governos nacionalistas em países atrasados serem atualmente “ditaduras”. Podemos citar o governo Nasser no Egito ou os governos nacionalistas africanos de hoje no Níger, Mali e Burkina Fasso. Tendo isto em mente, qual é o aspecto concreto da luta abstrata pela “democracia”? De uma luta contra os governos nacionalistas dos países atrasados; a ironia é que as mais horrendas ditaduras foram todas colocadas no poder pelo imperialismo “democrático” e nunca houve campanha alguma contra esses regimes políticos.
Como já denuncia o último parágrafo, a realidade é que o imperialismo “democrático” de democrático nada tem. Depois da guerra, em muitos casos com o apoio dos partidos comunistas dominados pelo stalinismo, começou uma onda de golpes de Estado sem precedentes na história contra governos nacionalistas; em muitos casos sob cobertura da questão da “democracia”. Por exemplo, quando do golpe de 1937 que instaurou o semifascista Estado Novo, o golpe foi dado com total apoio do imperialismo; no entanto, com o desenvolvimento de uma política de tipo nacionalista, o governo Vargas não podia mais ser tolerado pelos norte-americanos. Nada havia com “democracia”, até mesmo porque o governo caminhava na direção de um regime político tão democrático quanto é possível no Brasil capitalista atrasado.
Na última Análise da Semana, ocorrida no sábado (30), o companheiro Rui Costa Pimenta deu uma atenção especial para o golpe no Irã de 1953 contra o governo Mossadegh, que fora eleito democraticamente e que levava adiante uma política nacionalista para com o petróleo. Quem organizou o golpe? Os serviços de inteligência dos democráticos Estados Unidas e da democrática Inglaterra. Qual o resultado? A entrega do petróleo iraniano nas mãos de monopólios ingleses e norte-americanos e a implantação da ditadura brutal do xá Reza Palehvi, que seria somente derrubada em 1979 com a Revolução Iraniana. Evidentemente, a questão “democrática” mantém-se forte nos ataques ao governo nacionalista dos aiatolás, particularmente sob o véu da “defesa da mulher”.
Por outro lado, a existência da política de golpes de Estado é em si uma evidência da fraqueza do imperialismo: se no pré-guerra o controle se exercia diretamente por meia da ocupação militar (não faltam exemplos na América Central), desde então foi preciso uma política de certa forma indireta. Se era evidente para os “mais antigos”, que sentiram na pele os horrores das ditaduras pró-imperialistas, como retornamos a um cenário em que mais uma vez prevalece em diversos setores da esquerda (mesmo alguns que não estão diretamente na folha de pagamento do imperialismo) a defesa da “democracia”?
No final dos anos 70, a política de golpes, e a propaganda dos EUA como grandes democratas, estava esgotada, donde a tentativa durante o governo Carter (que, sabe-se, fora escolhido num grande consenso entre os capitalistas americanos, europeus e japoneses) de uma política externa mais “suave”. No entanto, a onda golpista na América Latina da década passada demonstra de maneira cabal que a política externa dos golpes voltou; e se estes, em geral, ainda não adquiriram um caráter de intensa violência, é simplesmente porque a resistência contra eles ainda não justificou tal política.