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Documentário

Raro filme de Agnès Varda discute arte, memória e nazismo

Ao discutir arte contemporânea, filme explicita a subjetividade das classes médias urbanas no capitalismo tardio.

A diretora francesa Agnès Varda ficou conhecida por seus documentários sociais comoventes sobre a França contemporânea e por suas entrevistas com pessoas que estão, por vontade própria ou não, à margem das estruturas do capitalismo.

É assim que retrata, por exemplo, aqueles que vivem dos restos das colheitas rurais ou das colheitas urbanas em Os Catadores e Eu (Les glaneurs et la glaneuse, 2000), um de seus filmes mais famosos.

Esse texto é sobre um de seus documentários, um média metragem na verdade, que passaria despercebido se não estivesse disponível em streaming. Trata-se Ydessa, les ours et etc … (Ydessa, os Ursos e etc. …, 2004), uma preciosidade que consegue captar a subjetividade contemporânea, que Fredric Jameson chama de pós-moderna.

Neste filme, ao contrário de Os Catadores e Eu, o foco não está nas pessoas marginalizadas, mas sim nos integrantes da classe média urbana das grandes cidades, indivíduos que entendem que há problemas no mundo, mas desfrutam dos confortos que ele oferece.

Aparecem também os ricos na figura da personagem principal Ydessa Hendeles, curadora, artista e colecionadora de arte alemã-canadense, cujos pais judeus poloneses sobreviveram a Auschwitz e Bergen-Belsen.

Com sua entrevistada e uma discussão sobre forma artística (sempre presente em seus filmes), Varda consegue captar a conjuntura cultural à qual estamos imersos e provocar uma reflexão sobre como a arte contemporânea enfrenta as contradições do capitalismo tardio.

O ponto de partida é o trabalho que Ydessa realizou em Munique em 2002 e 2003, no Haus der Kunst, um prédio construído pelo Terceiro Reich na década de 1930.

A curadoria de Ydessa foi gigantesca, mas Varda mostra somente a exposição The Teddy Bear Project, uma instalação em grande escala construída em torno de uma coleção imensa de fotografias das primeiras décadas do século XX nas quais famílias e indivíduos posam com um singelo ursinho de pelúcia.

A cineasta nos faz percorrer a exibição, nos mostra detalhes da vida de Ydessa e de seu processo criativo, entrevista o público, expõe as dificuldades de uma coleção com um tema tão específico e tece comentários sobre os retratados, selecionando imagens para quem assiste.

No meio do filme, a surpresa: a instalação obriga o frequentador a entrar em uma sala vazia onde há a estátua realista e em tamanho natural de um homem ajoelhado e de costas. É Adolf Hitler.

Ao contrário do que se poderia imaginar, Varda não tenta explicar os possíveis significados da associação entre fotografias antigas, ursinhos de pelúcia e nazismo. Isso ela deixa para os entrevistados e para sua personagem Ydessa.

Suas questões vão um pouco além. É evidente que há uma genuína curiosidade sobre as centenas de retratados anônimos ali expostos. Essa curiosidade atinge quem assiste: queremos saber mais sobre eles, sobre o momento da foto e o que aconteceu com suas vidas. Além disso, Ydessa tem algo de catadora.

O filme, porém, nos coloca algumas questões: o que há em nosso momento histórico que permite a criação de uma obra como essa? Que tipo de cenário cultural/econômico precisa existir para que alguém imagine tal representação?

A subjetividade contemporânea imersa no capitalismo globalizado nos oferece as respostas. É evidente que o objetivo é chocar quem visita pela lembrança inesperada de um brutal fato histórico.

Os ursinhos de pelúcia ganham assim ares de distração, problema que Ydessa associa ao momento presente. De fato, a distração já era, em 2003, um fenômeno elevado à sua máxima potência. Enquanto nos distraímos com bobagens, o inferno acontece, parece nos dizer a artista.

No entanto, a singularidade (Jameson), na forma de instalação artística, não consegue evitar as contradições de classe que a abordagem do documentário de Varda sobre a exposição faz emergir. A principal delas é que as fotos antigas em conjunto com a estátua de Hitler estão esvaziadas de materialidade histórica.

A associação fortuita as transforma em conceitos abstratos carregados de significação totalizadora: a “ingenuidade” da coleção de memórias fotográficas está em choque com a estátua do “mal absoluto”, que não deve ser esquecido.

As causas do nazismo nos anos 1930 não fazem parte da obra, como se Hitler fosse apenas uma sombra vergonhosa de um passado superado. Para a curadora e os frequentadores, nosso momento histórico é mais civilizado e não permitiria regredirmos a uma barbárie desta natureza.

Nos dias de hoje, sabemos que isso é um engano. O problema da instalação é a redução do fenômeno do nazismo à terrível perseguição aos judeus, revelando o rancor da colecionadora, mesmo que justificado. É uma leitura que já servia aos propósitos políticos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos e se tornou senso comum entre os integrantes das classes médias urbanas.

O nazismo foi muito mais do que isso: foi também uma reação violenta do capitalismo a ameaças concretas e às próprias contradições geradas em seu interior. Foi uma arma contra a União Soviética, que tentou aniquilar de todas as maneiras (leia aqui minha análise do filme russo O fascismo de todos os dias).

É impressionante notar, neste momento de conflito na Ucrânia, como pouco estudamos e discutimos os massacres no leste europeu perpetrados pelos nazistas durante a II Guerra. 

A instalação não é uma crítica ao capitalismo, mas ao Holocausto. Ela poupa o capitalismo, raiz do nazismo. E ajuda a naturalizar um recorte específico do que aconteceu, reduzindo o fato histórico a um só problema. Tal interpretação é uma forma de apagamento típica da subjetividade contemporânea.

Varda consegue, de certa forma, nos alertar para esse que é, em sua essência, um dos males do nosso atual momento histórico. E explica o título do filme, no qual o problema nazismo/capitalismo vira somente um “etcetera”.

Streaming

Ydessa, os Ursos e etc. … está no Mubi.

*A opinião dos colunistas não representam, necessariamente, a posição deste Diário

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