Na semana passada, o cinema mundial perdeu um de seus criadores mais engajados: o diretor francês Jean-Marie Straub, aos 89 anos. Ao longo de 50 anos, ele e a esposa Danièle Huillet, falecida em 2006, dirigiram mais de 30 filmes que mostram um grande compromisso com a criação de uma arte que é política em sua essência. “O cinema deve atear fogo à vida”, disse ele em uma entrevista.
De fato, assistir a um filme do casal Straub-Huillet é encontrar uma abordagem crítica e engajada sobre a conjuntura sócio-histórica, que nos convida à reflexão e a estudos mais aprofundados sobre os temas e a forma escolhida para apresentá-los. Os cineastas foram, antes de tudo, artistas conscientes da importância do cinema como meio de apontar as contradições do sistema capitalista.
É o caso de Relações de Classe (Klassenverhältnisse, 1984), filme que escolhi para a análise desta semana. Trata-se de um longa-metragem baseado no romance de Franz Kafka, O Desaparecido ou Amerika, escrito na década de 1910, mas só publicado em 1927. Uma das características do cinema de Straub-Huillet é sempre usar um texto já existente como ponto de partida de seus filmes.
No enredo, acompanhamos as desventuras do jovem Karl Roßmann (Christian Heinisch) ao chegar nos Estado Unidos como um imigrante alemão. Os encontros e desencontros de Karl ao longo do caminho são marcados pelas relações de classe que o filme quer enfatizar como tema.
Em sua primeira cena importante, ainda dentro do navio que chega a Nova York, o vemos confrontar o capitão na defesa de um trabalhador que está sofrendo nas mãos de seu superior imediato. Seu papel de defensor é interrompido pela interferência de seu tio milionário, que estabelece qual deve ser seu lugar no mundo.
Após uma desobediência que o leva a perder as benevolências do tio, Karl parte em busca de sustento e acaba encontrando um emprego em um hotel, onde é contratado como ascensorista de elevador. Em um dado momento, ele perde o emprego e o que temos é uma encenação primorosa das relações de poder e de classe.
Karl está no seu posto de trabalho quando é interrompido por um conhecido que lhe pede dinheiro. O homem não está se sentindo bem e Karl o leva ao dormitório dos funcionários do hotel para descansar. Ao voltar ao trabalho, recebe a ordem de comparecer à gerência imediatamente.
O que vemos na sequência é a encenação de um julgamento. Karl é duramente repreendido por deixar o seu posto e a punição é seu imediato afastamento. Os papéis são definidos: a gerência do hotel, representando a classe média, está na posição de acusadora e seus argumentos distorcem as boas intenções do jovem. Karl é apresentado como um mentiroso, que se relaciona com vagabundos, bêbados e prostitutas. No papel de juiz está a burguesia, neste caso a dona do hotel, que profere a sentença de demissão, não dando a ele outra chance.
A representação do julgamento de Karl é claramente uma reflexão sobre a luta de classes dentro do sistema capitalista. Na diegese do filme, a cena é um espelho da que vimos no navio, quando Karl assumiu a posição de defensor. Aqui, não há ninguém para defendê-lo. De uma forma mais ampla, a cena representa, de maneira alegórica, a função da justiça dentro das condições estabelecidas pelo estado burguês. A opressão sobre Karl, que aqui está na posição de trabalhador, é brutal e qualquer ideia de sonho americano é cortada pela raiz.
Relações de Classe é um filme que convida a esquerda ao debate. Cada encontro de Karl com outros personagens pode ser objeto de discussão e de aprendizado. Vale ressaltar os aspectos formais da encenação. Há muitos estudos que classificam o cinema de Straub-Huillet como brechtiano, ou seja, vinculado às ideias do teatro épico, formuladas por Bertold Brecht, e de suas técnicas como o efeito de estranhamento.
De fato, o filme é narrativo, mas passa longe das fórmulas mais comerciais. Recentemente, discutimos essa questão em um texto sobre um filme de julgamento intitulado Argentina, 1985. É absolutamente evidente a diferença no ponto de vista de classe sobre o tema da justiça nos dois filmes.
Apesar de situar sua ação nos Estados Unidos, Relações de Classe foi todo filmado na Europa, com algumas cenas externas em solo americano (como a da Estátua da Liberdade). Todo falado em alemão e em preto e branco, é evidente que o filme foge da encenação dita como “realista” do cinema mais comercial, contrapondo-a. Aqui, claramente, há uma questão que envolve o ponto de vista sobre o narrado. Já sabemos que a narrativa mais comercial naturaliza os valores da classe dominante.
Um detalhe interessante está na sub-titulagem de Relações de Classe. Os subtítulos em inglês do vídeo que assisti são mínimos e permitem o entendimento do que está sendo dito no limite. É como se os autores nos obrigassem a ouvir alemão e a permanecer com os olhos nas imagens, algo que é limitante quando se tem que ler legendas. Para aquelas pessoas que, como eu, não falam alemão, o efeito de estranhamento é evidente. É impossível mergulhar no filme e perder-se, como um peixe fisgado, em sua encenação.
Para finalizar, deixo aqui alguns materiais interessantes para quem pretende se aventurar a assistir este filme:
Relações de Classe pode ser assistido no YouTube, de graça, com legendas em inglês, neste link.
Neste link do Vimeo, há um making of do cineasta Harun Farocki, ator no filme, sobre os ensaios em Relações de Classe e o trabalho com Straub-Huillet.
E, neste link, da revista Senses of Cinema, também em inglês infelizmente, há uma excelente entrevista sobre este filme que o casal concedeu em 1984.
* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário