Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Cinema soviético

Filme soviético Vá e Veja é uma aula de história

A partir de ponto de vista de seu protagonista, Klimov oferece uma experiência cinematográfica brutal, que visa fazer daqueles que assistem testemunhas.

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No sistema capitalista atual, há dois tipos de pessoas: aqueles que ficam muito ricos com cadáveres e aqueles que são ou serão cadáveres.

Neste sistema econômico, a única contabilidade possível é aquela que calcula o custo do cadáver em relação ao lucro recebido com sua produção.

Por isso, não é de se admirar que a gestão da pandemia seja eficazmente planejada para garantir o máximo de enriquecimento por corpo enterrado. A pergunta que fica é: dos tipos descritos acima, que pessoa você é?

Em um passado nem tão distante, a produção em massa de cadáveres em nome do lucro foi bem menos higiênica que a atual, ou seja, passava longe de tubos em traqueias colocados por trabalhadores de saúde exaustos em UTIs lotadas.

Na II Guerra Mundial, a matança acontecia a céu aberto, em campos de concentração e até mesmo dentro de igrejas. Este último exemplo faz parte da principal cena do filme soviético Vá e Veja (Idi i smotri, 1985), dirigido por Elem Klimov.

O filme conta a história do adolescente Flyora (Aleksey Kravchenko), camponês na vila de Khatin, que, após achar uma arma, junta-se aos guerrilheiros que combatem a invasão alemã na Bielorrússia em 1943.

Klimov fez um filme avassalador, que usa recursos épicos para passar uma mensagem simples: vá, veja e não esqueça. Ele utiliza Flyora como testemunha do horror, fazendo-o presenciar atos de pura crueldade e escapar da morte por mero acaso.

Esses escolhas narrativas têm motivos sólidos. A partir de ponto de vista de seu personagem, Klimov oferece uma experiência cinematográfica brutal, que visa fazer daqueles que assistem testemunhas também.

Se um filme é um exercício de representação do real, que seja também de memória sobre os fatos que precisam ser lembrados para que não se repitam. É a documentação de uma câmera que não estava lá no momento do acontecimento, mas que quer mostrá-lo da melhor maneira. (Revela uma urgência que parecia perceber o fim da URSS no momento de sua produção).

Com as escolhas formais do diretor, o ato de ver o filme se torna um exercício ativo sobre a História. É um chamado à nossa responsabilidade como testemunhas. Não dá para se entreter em Vá e Veja.

Em vários momentos, temos o uso da câmara subjetiva, ou seja, que mostra a ação a partir do que o personagem vê. Em outros, os atores olham direto para a câmera e dizem suas falas como se dialogassem com o público. São esses momentos épicos que buscam o olhar ativo de quem assiste.

Em certo sentido, Klimov alcança o limite técnico possível de modo a trazer o espectador para dentro da ação. Ele quer que sintamos a dor de Flyora ao ter um revólver apontado para sua cabeça. Ele quer que envelheçamos como seu protagonista.

Na cena da igreja, o inimaginável: camponeses e suas famílias, incluindo crianças, são queimados vivos pelos nazistas.

A representação é documental: das 9.200 localidades destruídas na URSS durante a II Guerra Mundial, 5.295 estavam situadas na Bielorrússia. Mais de 600 vilas, como Khatyn, foram aniquiladas juntamente com toda a sua população. Cerca de 2.230.000 soviéticos, um terço dos habitantes da Bielorrússia, foram mortos durante os anos da invasão alemã. (fonte: CPC-UMES).

O título do filme é uma alusão ao capítulo 6, versículos 7 e 8, do Apocalipse de S. João:  Quando o Cordeiro abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto ser vivente dizer: “Vem e vê!”  E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o nome do que estava montado sobre ele era Morte; e o inferno seguia com ele. E foi-lhe dado o poder sobre a quarta parte da terra para matar à espada, e com a fome, e com a peste, e com as feras da terra.

No nosso tempo histórico, os que sobrevivem são testemunhas. Não esqueça.

Streaming

Vá e Veja está na plataforma SESC Digital. #CinemaEmCasa #Cinesesc Também pode ser adquirido em DVD no site do CPC-UMES.

*A opinião dos colunistas não representam, necessariamente, a posição deste Diário

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