Há um filme que está fazendo um grande sucesso entre as esquerdas no momento. Trata-se de Argentina, 1985, dirigido por Santiago Mitre. O enredo conta a história do grupo de promotores, liderados por Júlio Strassera (Ricardo Darín), que condenou, em um julgamento civil, os principais comandantes da ditadura militar argentina por crimes contra a humanidade, incluindo o golpista Jorge Rafael Videla, que governou o país de 1976 a 1981.
Estima-se que, durante esses anos, mais de 30 mil argentinos foram levados para centros clandestinos, torturados sem piedade e mortos sem deixar vestígios. As forças armadas argentinas armaram uma guerra contra a população civil de seu próprio país, destruindo focos de resistência, principalmente os opositores de esquerda, que eram acusados de subversão e de ameaça à segurança nacional.
O filme tem o mérito de levantar uma discussão importante não só para o povo argentino, mas também para toda a América Latina, em especial o Brasil, ao dramatizar um ponto de virada histórico que resultou na condenação de um presidente da república militar por uma corte de justiça civil. Anos depois, Videla foi anistiado e só condenado novamente à prisão perpétua em 2010. A lei da anistia argentina foi considerada inconstitucional em 2005. O julgamento retratado no filme foi o primeiro de centenas que aconteceram neste país desde o fim da ditadura militar.
No Brasil, o filme tem repercutido na esquerda porque a Lei da Anistia de nosso país, de 1979, nunca foi revogada. Os militares brasileiros que impuseram os mesmos métodos de tortura, assassinatos e desparecimentos a opositores políticos nunca foram julgados e condenados por seus crimes.
Se tem o mérito de suscitar a discussão sobre o papel da justiça diante dos crimes cometidos na ditadura militar, Argentina, 1985 também lança uma outra questão, essa mais ligada às escolhas formais para a dramatização de um fato histórico desta magnitude. De um modo geral, a película pode ser classificada como um “thriller político” que, na tradição do cinema americano, já vimos em inúmeros filmes de julgamento, um gênero em si. Nesse momento, lembro-me, por exemplo, de Questão de Honra (A Few Good Men, 1992), dirigido por Rob Reiner, com Tom Cruise e Jack Nicholson.
Como integrante desse gênero, Argentina, 1985 tem uma característica contraditória que é nosso interesse explorar neste texto. Ele consegue entreter quem assiste ao apresentar o suspense que leva ao julgamento e as dificuldades pelas quais passa o personagem principal, Strassera, até seu triunfo. Podemos acompanhá-lo nos pequenos conflitos com os filhos inteligentes e a esposa confidente. Acompanhamos seus embates com políticos, juízes e demais colegas de trabalho. É através do que acontece com ele e com suas ações que a narrativa do filme avança.
Como se diz na construção de roteiros, há um arco que o personagem percorre: do funcionário público indeciso e medroso ao promotor que se torna um herói admirado por todos. Dessa maneira, apesar do tema ser a ditadura militar, o enredo é sobre a vida de Strassera e tem como função chegar à cena em que ele lê a sua peça de acusação e é aplaudido de pé. Videla e os demais comandantes militares aparecem no filme para serem somente o que são: vilões caricatos.
Em uma entrevista de 2008, o cineasta alemão Michael Haneke, diretor, entre outros, de A Fita Branca (Das weiße Band, 2009) fez uma reflexão interessante: “é possível fazer um filme anti-fascista com meios fascistas”? A esta pergunta, uma outra logo surge: é fascista o meio, ou seja, a narrativa hollywoodiana clássica?
Podemos dizer que, no mínimo, trata-se de uma manifestação artística de direita, principalmente quando é usada e aceita como sinônimo de realidade. É possível classificá-la também de reacionária quando esconde, embaixo da capa do herói, a conjuntura social e política que permitiu o surgimento de estados fascistas na Argentina e no Brasil, e exclui, de maneira proposital, as lutas anticapitalista e anti-imperialista da classe trabalhadora, no âmbito da Guerra Fria, que caracterizaram aqueles anos.
As jornadas do herói e do vilão suavizam estas questões. Bases estruturais das narrativas hollywoodianas são, muitas vezes, apenas a visão de mundo da classe dominante. A representação de um fato histórico de mais de 30 anos com essas características em 2022, na atual situação social e histórica na Argentina, e até mesmo no Brasil, torna-se assim a grande questão que Argentina, 1985 nos coloca.
No seu discurso, Strassera relativiza a guerra imposta pelos militares à população civil e a transforma em questão moral e psicológica, de sadismo de indivíduos cruéis. Contraditoriamente, poupa o sistema econômico capitalista e a burguesia argentina da perversidade e lava a história aos nossos olhos. Tal artifício diz muito mais sobre como a classe dominante capitalista atualmente orienta a percepção e a memória histórica do que com o que de fato aconteceu em 1985. Não por acaso, há muitos momentos leves e de humor no filme.
Ainda no âmbito da construção dramática, não podemos esquecer que, desde 2013, um enredo muito parecido foi usado no Brasil, via telejornais e mídias impressas e digitais, para justificar o golpe de estado de 2016 e de sua continuação em 2018. Até hoje, centenas de milhares de pessoas ainda seguem e admiram os promotores e juízes da Operação Lava-Jato. No caso, a perversidade está na manipulação da história como se fosse fato e realidade. Em sua essência, a Operação Lava-Jato é um teatro que segue a mesma receita dramática hollywoodiana, aplicada à realidade. De maneira contraditória, a esquerda, ao condenar juízes e promotores individualmente, apenas salva um sistema podre de uma transformação efetiva.
Em Argentina, 1985, há ainda um processo de identificação que é catártico, mais um elemento dramático da narrativa hollywoodiana. Ficamos felizes com a punição dos malvados (merecida, claro). Mas é bom ficarmos atentos ao fato de que Strassera e Videla, ambos funcionários públicos do Estado burguês argentino, são de classe média. Como é também a grande maioria da audiência deste filme.
A contradição está no fato de que esta necessidade de catarse – muitas pessoas dizem ter chorado na cena da leitura da peça de acusação – é da mesma natureza que faz com que os bolsonaristas, na sua grande maioria indivíduos da classe média e da pequena burguesia, ainda estejam nas ruas pedindo intervenção militar, ou divina, para que consigam o tão almejado final feliz para a história que eles defendem como real. Vivemos um momento histórico em que realidade e ficção se misturam de maneira perversa.
Por isso, é importante que a esquerda não se deixe manipular, buscando o mesmo final catártico só porque os vilões que lhe interessam são punidos no final. Isso é um comportamento de direita, não de esquerda. É necessário superar esse limite na arte e na atuação política. A realidade exige de nós sempre o distanciamento e a avaliação concreta dos fatos e da conjuntura à luz das condições materiais de existência impostas pelo capitalismo e do ponto de vista da classe trabalhadora. Caso contrário, corremos o risco de sermos reféns de nossa necessidade de expiação, de intervenção e de punição tal qual nossos compatriotas apaixonados por suas ilusões, sem nunca entender qual é a real necessidade de mudança.