Infelizmente, ao escrever minha coluna sobre música, deparo-me com outro necrológio; desta vez, escrevo imensamente entristecido pois, originalmente, esse texto se chamava “Os oitenta de Djalma Corrêa”, quando eu pretendia comemorar o aniversário e agora lamento sua morte. E assim, quem completou 80 anos de idade no dia 18 de novembro de 2022, veio a falecer no dia 8 de dezembro do mesmo ano, algumas semanas atrás.
Djalma Corrêa foi um dos grandes percussionistas brasileiros; em um país frutífero em bateristas e percussionistas feito o Brasil, berço dos maiores bateristas e percussionistas do mundo, Djalma Corrêa merece ser eternamente lembrado. Quando adolescente, estudei entusiasticamente percussão brasileira; um de meus professores, o mestre Papete, nome artístico de José de Ribamar Viana – quem brevemente merecerá um texto nesta coluna –, tendo o prazer de dividir a percussão com Djalma em várias ocasiões, sempre me disse ser seu parceiro favorito; veio de Papete a recomendação de escutar atentamente o álbum do Djalma Corrêa chamado “Candomblé”.
“Candomblé” foi lançado em 1977; não se trata de um trabalho em que Djalma Corrêa se coloca enquanto percussionista, expressando criatividade e virtuosismo, mas do registro dos ritos do candomblé, cuja música é baseada na percussão e no canto. Djalma dirigiu a produção do álbum, concebeu a capa, fez as fotografias e escreveu o texto justificando a documentação, descrevendo e explicando o rito registrado em 15 faixas; cada faixa é dedicada a um orixá específico, seguindo-se esta sequência de invocações: Exu, Ogum, Oxóssi, Ossanha, Obaluaê, Oxumarê, Xangô, Iansã, Oxum, Nanã, Iemanjá, Euá, Obá, Oxalá, Avania. Os músicos participantes do trabalho pertencem a casas tradicionais de culto afro-brasileiro na Bahia; os atabaques são percutidos por Vadinho, Dudu, Alcides; os cantos foram entoados por Alice, Eliana, Vadinho, Dudu, Alcides.
Evidentemente, o registro feito por Djalma Corrêa em “Candomblé” pode ser valorizado de variados pontos de vista; sua importância é histórica, antropológica, linguística, política, todavia, prefiro me deter em sua relevância musical. O atabaque é um instrumento, em termos de América Latina, basicamente praticado no Brasil e no Caribe, quer dizer, na América Latina formada por povos predominantemente negros e, por isso mesmo, praticantes das religiões afro-latinas; em linhas gerais, trata-se dos lugares, além do candomblé, respectivamente, do samba e da salsa, ambos ritmos e gêneros musicais de matriz negra. Desse ponto de vista, Djalma Corrêa nos convida, em seus registros, a apreciar as muitas variações rítmicas e timbrísticas da percussão oriunda da África e a perscrutar, naquelas raízes, seus desdobramentos nas mãos habilidosas de músicos semelhantes a ele, tais quais Nana Vasconcelos, Airto Moreira, Mestre Marçal, Papete, Cyro Baptista e tanto outros.
Certa vez, em entrevista, não lembro de quando nem onde, Djalma Corrêa declarava haver sido ele um dos responsáveis a levar a percussão da cozinha para a sala. Isso precisa ser explicado melhor, pois a expressão “cozinha”, referindo-se a percussão, está, senão abandonada, algo esquecida. Uma interpretação equivocada da expressão, de inspiração identitária, seria crer que, devido ao trabalho doméstico, os negros batuqueiros estariam vinculados à cozinha e os brancos pianistas, à sala de visitas. O equívoco seria grosseiro, afinal, os negros brasileiros sempre ocuparam lugar de destaque nas artes do Brasil, principalmente na música e na poesia; apenas para lembrar de alguns nomes devidamente reconhecidos: (1) Moacir Santos foi maestro e compositor; (2) Paulo Moura e Pixinguinha tocavam saxofone; (3) Benedito Costa tocava cavaquinho; (4) Johnny Alf foi pianista; (5) Elizeth Cardoso, Elza Soares e Ivone Lara são cantoras; (6) de Domingos Caldas Barbosa a Kátia de França, Cartola, Zé Keti e Paulinho da Viola, há numerosos poetas negros na canção brasileira. Além do mais, a percussão brasileira não é praticada exclusivamente por negros; dos seis percussionistas citados anteriormente, três deles são brancos.
Talvez, o melhor modo de interpretar a correlação entre “cozinha” e percussão seja pensar na disposição dos músicos no palco, colocando-se, em regra, a bateria e a percussão ligeiramente apartadas dos demais músicos e dos cantores e solistas, feito acontece com as cozinhas nas casas; a expressão ainda cabe à função comumente atribuída aos percussionistas de acompanhar, fazendo a base rítmica para os protagonistas da banda, tal qual o calor, durante o cozimento. Creio, portanto, haver sido nesse sentido que percussionistas em concordância com Djalma Corrêa levaram a percussão da cozinha para a sala, tornando-se não acompanhantes, mas solistas, colocando-se, consequentemente, diante de todos no palco. Essa reflexão remete, diretamente, ao álbum “Baiafro”, de 1978, da série Música Popular Brasileira Contemporânea, a MPBC, do selo Philips.
Lançado nos anos de 1970, o selo MPBC renovou o conceito de música popular brasileira, na maioria das vezes e segundo alguns críticos, restrito à canção, isto é, a músicas com melodia e letra; alguns desses críticos, restringindo ainda mais o campo da MPB, identificam-no somente com a música derivada da bossa-nova e do tropicalismo. Contrariamente, o selo MPBC, incluindo a música instrumental nos domínios da sigla, gravou predominantemente solistas e apenas cantores, à semelhança de Célia Vaz, cujos trabalhos vocais dialogam com os demais músicos; entre aqueles solistas, estavam: Stenio Mendes, tocando craviola – instrumento de cordas brasileiro concebido por Paulinho Nogueira –; Robertinho Silva, tocando bateria e percussão; Djalma Corrêa, tocando percussão com o álbum “Baiafro”.
De “Baiafro”, quero destacar as faixas “Os quatro elementos” e “Baiafro”, pois, na primeira, explicitam-se as influências da percussão própria do candomblé, com Djalma tocando os atabaques, e a segunda porque remete a uma performance sua bastante engenhosa. Ao se apresentar ao lado de Paulo Moura e outros companheiros, Djalma, em determinado momento, cedendo-lhes os atabaques para conduzirem a base rítmica, do centro do palco portava um penico de metal, de dentro do qual ele sacava, feito mágico, uma coleção de objetos transformados, por suas mãos, em instrumentos de percussão; no final, quando o penico estava vazio, ele próprio, virado ao contrário, virava campana, ressoando feito sino tocado por Djalma Corrêa, quem inventava, dessa maneira, novos timbres e novas formas de tocar. Em “Baiafro” – não o álbum inteiro, mas a composição –, Djalma apresenta algo semelhante; por ser gravação, ele pode tocar todos os instrumentos, fazendo ele próprio a base e as variações; em meio aos timbres utilizados, me pareceu escutar aquele penico em meio aos demais tambores, rototons e campanas.
Por fim, vale lembrar de que Djalma Corrêa foi membro do Quarteto Negro, formado por Zezé Motta, Paulo Moura e Jorge Degas – também tema previsto para nossa coluna –; Djalma deu brilho e beleza a muitas gravações e apresentações de Toquinho, Gilberto Gil e Chico Buarque de Holanda, entre tantos; que sua força tenha retornado às forças da natureza, louvadas por ele com devoção de músico.
Seguem os links do Youtube com o registro completo de “Candomblé” e as gravações de “Os quatro elementos” e “Baiafro”, do álbum “Baiafro”:
“Candomblé” =
“Os quatro elementos” =
Água – Oxum
Terra – Oxóssi
Ar – Iansã
Fogo – Xangô
“Baiafro” =






