É relativamente conhecida entre os marxistas a passagem de Trótski, contida em entrevista concedida ao dirigente operário argentino, Mateo Fossa, em 1938, na qual expõe a política marxista para o caso de conflito entre um país imperialista e um país atrasado. Pedimos licença ao leitor para citar o trecho que, embora longo, é bastante esclarecedor:
“Existe atualmente no Brasil um regime semi-fascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto, que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que lado do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil “fascista” contra a Inglaterra “democrática”. Por quê? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse, ela colocaria um outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. É preciso não ter nada na cabeça para reduzir os antagonismos mundiais e os conflitos militares à luta entre o fascismo e a democracia. É preciso saber distinguir os exploradores, os escravagistas e os ladrões por trás de qualquer máscara que eles utilizem!”
Citamos esse trecho porque ele nos oferece, em forma condensada, as coordenadas políticas a partir das quais podemos analisar a Copa do Mundo do Catar. Partimos, evidentemente, da premissa de que a Copa do Mundo não é um fenômeno alheio à luta de classes. Consideramos que, por se tratar da maior competição esportiva do mundo, uma competição que movimenta bilhões de dólares e bilhões de pessoas, aos lado dos quais atuam as principais forças políticas do mundo (os Estados nacionais) ― consideramos que a luta entre as classes sociais, à escala mundial, se manifesta irremediavelmente, ainda que maneira particular, no torneio entre as principais seleções nacionais de futebol.
Trótski, no seu comentário, deixa claro duas ideias fundamentais. Primeiro, é preciso estabelecer uma rigorosa distinção entre os países imperialistas, opressores e os países atrasados, oprimidos, sendo dever dos marxistas defender os segundos contra os primeiros. Segundo, e intimamente relacionado com a primeira ideia, o revolucionário destaca que, na análise, o fundamental não é a forma do regime político dos países ― se “democrática” ou “fascista” ―, mas o caráter da dominação de classe que vigora em cada país. Trocando em miúdos: quem manda é a luta de classes.
À luz dessas coordenadas fica fácil compreender a campanha que se desenrola a olhos vistos contra o país-sede da Copa, o Catar. A campanha é vasta e variada. No arsenal encontram-se denúncias de exploração e morte de trabalhadores nas obras da Copa e as clássicas acusações de que o país é governado por uma ditadura sanguinária que oprime as mulheres e a população LGBT. Na imprensa esportiva é também comum a menção ao caráter “artificial” da Copa, à “frieza” da competição no país.
Se Trótski está certo em sua análise, como compreender esse fato? O que é mais importante na análise: a forma política do regime ou a natureza de classe da sociedade catari?
Que o Catar é governado por uma ditadura atrasada, ninguém duvida. Mas quem irá negar que se trata de uma nação atrasada, dominada pelo imperialismo? Quem irá negar que o atraso do país, inclusive do seu regime político, é um resultado direto da dominação imperialista? E quanto aos veículos promotores dessa campanha? A que interesses respondem os monopólios da imprensa nacional e internacional? Quem aqui vai negar os vínculos históricos entre a Globo e os demais órgãos de imprensa e o imperialismo norte-americano?
A situação ganhou contornos ainda mais cristalinos com o andamento da competição. A Copa no Catar vem colocando no centro do palco a luta dos palestinos contra a opressão do Estado de Israel. Bandeiras palestinas pipocam aqui e ali nas arquibancadas dos estádios. Jogadores de futebol entram em campo, jogam o jogo e terminam hasteando a bandeira do povo oprimido. E o que o país-sede tem a ver com isso? Tudo.
O Catar é um conhecido apoiador da causa palestina e seu governo costuma prestar ajuda à principal organização política dos palestinos na sua luta pela libertação nacional, o Hamas. Não é por outro motivo que o país é considerado pelo imperialismo como financiador de atividades “terroristas”.
A luta de classes é implacável e insiste em dar as caras em cada fenômeno da vida social. A Copa do Mundo do Catar expressa mais um episódio da luta entre os países imperialistas e os países atrasados. Os verdadeiros marxistas não têm dúvida de que lado ficar.