Alguns artistas brasileiros, infelizmente, não se importam de usufruir das vantagens do imperialismo, aproveitando-se delas e, até mesmo, negando sua existência, seja por oportunismo, seja por incompreensão. Outros, contrariamente, não se cansam de denunciar suas mazelas, esse é caso do quadrinista brasileiro Eloar Guazzelli. O Guazzelli se notabilizou por fazer, em parceria com Rodrigo Rosa, uma excelente tradução do romance Grande Serão Veredas para a linguagem da HQ, além disso, ele também escreve seus próprios roteiros, nos quais aquelas denúncias são frequentes. Quero lembrar de duas: (1) O Relógio Insano, um dos volumes da Coleção 100% Quadrinhos, edições Graffiti, lançado em 2007; (2) O primeiro dia, editora Casa 21, também de 2007.
Logo na capa de O Relógio Insano, chama atenção o desenho do calendário asteca, mas com a face do Mickey no centro. Trata-se de uma ironia? Sem dúvida, é irônico pensar no Mickey, enquanto logotipo e metonímia da Disney, no centro de um calendário sagrado, espelho do cosmos e de seus reflexos na Terra. A ironia aponta para a tragédia: o domínio do capitalismo sobre a tradição, o dinheiro no lugar do conhecimento; no caso da Disney, o domínio do que há de pior na indústria cultural. A HQ é formada por três pesadelos, no primeiro deles, a partir do corpo de um homem morto, desovado no rio e com sinais de tortura, desencadeiam-se outras cenas de brutalidade fascista: queima de livros; repressão policial; vigilância invasiva e ostensiva.
No segundo pesadelo, entre escolher passar a eternidade assistindo a todos os filmes já feitos ou o filme da própria vida, o protagonista prefere a primeira opção. No topo da entrada do cinema em que se dará a projeção, está o Mickey no centro do relógio solar – um dos quadros desta sequência é, justamente, a imagem da capa –. Na tela, mais violência: guerra, genocídio, apartheid racial e social. Na HQ, as cenas fragmentadas do espaço gráfico simulam o tempo fragmentado do relógio insano, coincidente com o tempo do fascismo e suas mazelas. Eloar protesta contra o pesadelo fazendo com que mergulhemos nele; expresso na HQ, o pesadelo social nos coloca na posição do protagonista e de sua escolha, preterindo a vida. O que começa com menções aos corpos desovados em rios pelas ditaduras latino-americanas de meados do século XX termina em manifesto contra o fascismo mundial, do qual derivam todas aquelas ditaduras.
O combate à extrema direita imperialista continua em O primeiro dia. Como sempre, seu texto é sensacional! Em um dos capítulos, o autor descreve uma invasão imperialista dos EUA no planeta Marte; o texto da HQ está próximo da poesia, pode ser lido enquanto poema, um poema fantástico, que transcrevo aqui:
“A casa do meu povo é o deserto, este mesmo deserto que os seus soldados ocuparam recentemente. Eu sei que suas tropas desprezam nossa terra, dizendo que este lugar só tem pedra e poeira. Vocês não conseguem ver … vocês são cegos, vocês mentem. Afinal, por que vosso sangue, sangue… e nosso sangue, água? Havia silêncio sobre os mortos de seus massacres, havia estrelas e silêncio sobre os mortos de Wounded Knee, mas, antes dos Sioux, vocês tinham assassinado Shawnees, Cherokees, Arapahos, cobriram de sangue do Mississipi às Rochosas. Vocês se dizem civilizadores, é mentira, vocês são pura cobiça. Roubaram nosso planeta. Roubaram até o nome, batizaram com o nome de um deus da guerra, seu deus da guerra”.