Por Victor Assis
Foi irritante. Ou melhor, muito irritante. Entre 11 de setembro a 28 de outubro de 2018, repentinamente, uma parcela da esquerda pequeno-burguesa, que outrora aparecia em defesa da candidatura do ex-presidente Lula, decretou que lutar contra o golpe de Estado dado em 2016, lutar pela liberdade de Lula e lutar contra toda a ofensiva do imperialismo sobre a América Latina teriam se convertido em uma única luta: eleger Fernando Haddad para a Presidência da República.
A campanha ficou ainda mais irritante quando teve fim o primeiro turno das eleições, tornando então claro o cenário: a eleição sem a participação do ex-presidente Lula fez com que o fascista Jair Bolsonaro tivesse condições de crescer. A partir de então, a campanha eleitoral em torno de Fernando Haddad se transformou na luta da civilização contra a barbárie. Ou seja, a única maneira de impedir que Bolsonaro tomasse o poder e transformasse o país em uma ditadura seria deixar todos os problemas nas mãos do salvador Fernando Haddad.
Apesar da irritante campanha, confesso, por outro lado, que foi engraçado ver determinados setores entrando de cabeça na campanha do fim do mundo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, nos raros momentos em que ligou as máquinas de sua imprensa, procurou responsabilizar o PT pelo avanço da direita e fazer uma campanha de tipo anarquista pelo místico poder popular, aderiu prontamente à campanha. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que vivia criticando o PT por seguir a política de conciliação de classes — política essa que o PSOL segue o tempo inteiro, aliando-se até mesmo com o DEM —, subiu no palanque ao lado de Fernando Haddad. O que chamou mais atenção, no entanto, e que revelou a total histeria da pequeno-burguesia, foi o apoio do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) — mais conhecido como ursinho do morenismo, diante de suas ridículas tentativas de justificar seu implacável apoio a todo tipo de falcatrua imperialista, sobretudo as armadas contra o PT.
Passaram as eleições. Mas não passou a campanha besta da civilização contra a barbárie. A vitória eleitoral de Bolsonaro era inevitável: com o maior líder popular do país impedido, com uma campanha marcada por aproximações sucessivas com a direita — da Igreja Católica a Fernando Henrique Cardoso — e, sobretudo, sem nenhuma mobilização, não havia como ter outro resultado. No entanto, a campanha do vote em Haddad passou a dar lugar à campanha do a culpa não é minha, eu não votei no Bolsonaro — aos moldes da campanha que a direita fazia contra o governo de Dilma Rousseff. Os mais radicais chegavam a dizer que não queriam que Bolsonaro saísse, para o povo aprender a votar.
Essa lenga-lenga arrastou o ano de 2019 inteiro. O bárbaro Bolsonaro ameaçou a população de todas as maneiras possíveis e atacou sempre quando teve oportunidade. Nem Haddad, nem o PSOL, nem o PSTU, nem o PCB, contudo apareceram para salvar o povo. Mas para ser justo, todos contribuíram para a salvação… do governo Bolsonaro. Dos puritanos que questionavam a legitimidade de um povo que lança mão de palavras chulas para se defender de seus algozes aos budistas que tinham como mantra a frase a correlação de forças não é favorável, todos fizeram o imaginável e, sobretudo, o inimaginável para conter um movimento pelo fora Bolsonaro.
Nesse vácuo, em que ninguém quis se apresentar como salvador, uma vez que não havia mais nenhuma eleição para ser realizada, os heróis fabricados pela esquerda se mostraram ainda mais desqualificados. Jean Wyllys virou herói — pasmen — por fugir do país e se aposentar da política — ou, em outras palavras, para se salvar. Enquanto Alexandre Frota, depois de romper com o governo por alguma mesquinharia qualquer, serviu de consolo para a esquerda.
Veio 2020 e, com ele, o vírus COVID-19. Com presença discreta no ano-novo chinês, o vírus não tardou em ser conhecido em todo o planeta. Em três meses, a Organização Mundial da Saúde (OMS), mesmo a contragosto dos capitalistas, foi obrigada a declarar que o mundo estava enfrentando uma pandemia do coronavírus. Em meio à ameaça à saúde da classe operária mundial, surge a pergunta: quem irá nos salvar da pandemia?
A primeira reação da esquerda pequeno-burguesa foi dizer que Bolsonaro nos salvaria do coronavírus. Não com essas palavras, obviamente, mas por meio de uma pregação despolitizada pedindo para que ninguém saísse de casa e cancelando todas as manifestações contra o governo. Com o passar do tempo, chegaram à conclusão óbvia: não é possível salvar ninguém do coronavírus com a política do governo Bolsonaro.
Mas eis, então, que surge um problema. A mentalidade eleitoral da esquerda pequeno-burguesa é incapaz de encontrar qualquer tipo de solução para um problema político que não seja por meio de um salvador. É a vez, então, de os governadores entrarem em cena.
Já seria naturalmente deplorável ter como política jogar o destino da classe operária nas mãos de quaisquer governadores que fossem, visto que são todos eles parte de um regime político comandado pela burguesia e pelas oligarquias regionais. O pior, contudo, é que o desespero é tanto que não são apenas os governadores de esquerda que são apontados como salvadores do povo, mas sim qualquer um que se coloque contra a política genocida do governo Bolsonaro. Nesse exército de salvadores, portanto, até o palhaço assassino do João Doria ganhou uniforme.
A esquerda pequeno-burguesa comemora que Bolsonaro está isolado — os governadores, em geral, estão disparando uma série de medidas que visam ao isolamento parcial da população, enquanto o presidente ilegítimo manda todos irem para as ruas para encher os bolsos dos patrões e os cemitérios. Não há qualquer gesto humanitário por parte desses governadores: assim como Bolsonaro representa os interesses de um setor da burguesia, desesperado com a crise econômica, os governadores representam outro setor, preocupado com a provável explosão social que virá se nenhuma providência for tomada.
Por um lado, Bolsonaro faz mil e uma estripulias para salvar os patrões. Por outro, os governadores trabalham séria e responsavelmente para salvar os patrões. Como podemos observar, no Brasil, não faltam salvadores. Tanto é que o capitalismo, cujo corpo necrosado já fede, continua de vivo. Se há tantos salvadores assim para tão poucos salvos, seria, no mínimo, mais humano, uma política diferente. É preciso jogar nas mãos do povo o poder sobre seu próprio destino: é preciso organizar a mobilização pela derrubada imediata do governo e de todo o regime golpista.