O verdadeiro sentido de traição não é a recusa a reverenciar fetiches, como fazem místicos e militares. Traição é violar uma relação de solidariedade e confiança por interesse pessoal, colocando em crise todos os que acreditavam em nós e que, quase com certeza, nunca mais acreditarão.
No sábado 12 de janeiro, o presidente da Bolívia, Evo Morales, permitiu a entrada da INTERPOL em seu território (sobre cuja soberania falou quase sempre em todos seus discursos) para que puderam emboscar, prender e enfiar num avião a Cesare Battisti.
No dia 18 de dezembro, Battisti havia preenchido um formulário para receber a condição de refugiado político. Esse formulário satisfazia todos os quesitos da Convenção de Genebra e seu protocolo complementar, e fornecia todos os dados que qualificavam Battisti como perseguido político.
O CONARE (Consejo Nacional para los Refugiados de Bolívia, mesmo nome que seu equivalente no Brasil) podia tomar alguns dias para dar um resposta. Mas esse dia nunca chegou. Battisti ficou ignorando o que tinha acontecido com sua petição. De acordo com todos os tratados assinados pelos países das Américas e da Europa, quando um Estado recebe um pedido de refúgio, tem as seguintes opções:
- Aceitá-lo e proceder a registrar o peticionário, fornecer documentos, equacionar sua situação migratória, etc. Isto foi o que fez Tarso Genro em janeiro de 2009, porém não pode cumprir com todos os requisitos, porque foi obstruído pelo relator do STF, um capacho da Itália.
- Ou pode rejeitá-lo, de maneira fundada. Nesse caso, deve comunicar ao interessado. Este, por sua vez, pode requerer reconsideração no judiciário e também dar conhecimento ao ACNUR (Alto Comissionado da ONU) para que o ajude.
Em nenhum caso, um candidato a refúgio pode ser devolvido aos países que o procuram ou aqueles em que sua liberdade esteja em perigo. Isto é explícito no Artigo 33 do Protocolo de 1967, anexo à Convenção de Genebra de 1951 e se chama Princípio de NÃO DEVOLUÇÃO. Este princípio é conhecido por sua expressão em francês “NON-REFOULEMENT”, que é um “mandamento” conhecido por qualquer governo.
Nada disso aconteceu. O governo boliviano nunca mais falou sobre o assunto, e o formulário serviu para que o Brasil e a Itália pudessem identificar: Eh! Aí está o terrorista. Caiu na arapuca.
Isto era, sem dúvida, de conhecimento de um dos “cérebros” da revista Carta Capital, que declarou que Cesare estava na Bolívia, e que sabia isso pelos serviços de inteligência de… ISRAEL! Ele lançou a bola em seu panfleto do dia seguinte, numa muito bem pensada manobra para dissimular a origem da informação.
- Este detalhe, que parece ter passado despercebido, aumenta as suspeitas de que o governo boliviano estava em contato com a direita brasileira para tender uma armadilha a Battisti. Mesmo se a cumplicidade com os fascistas pudesse ser evidente a partir da assistência de Morales à posse de Bolsonaro, a combinação com os stalinistas de Carta Capital parece encontrar apoio no “palpite” dado por um dos donos de revista.
Esta foi a nova Operação Condor: Battisti foi preso, privado de advogado, de testemunhas, do direito a falar. Foi levado até uma masmorra na Sardenha, onde está atualmente.
A Quem Favorece o “Erro”?
Evo Morales tem proferido numerosos discursos, geralmente muito similares entre si, nos quais descreve as atrocidades perpetradas pelo colonialismo europeu na Bolívia. É óbvio que essa indignação está absolutamente justificada.
Há algumas décadas, os mais sérios pesquisadores têm mostrado que a carnificina feita pelas potências católicas na América Latina excede em muito o genocídio nazista do século XX. David Edward Stannard, tido como o melhor especialista vivente sobre o que ele chama American Holocaust, estabelece um número mínimo de 100 milhões de vítimas aborígenes (o número exato é, obviamente, impossível de calcular) durante o período de conquista. Tendo em conta o tamanho calculado da população indígena existente (bem menor que o dos habitantes da Europa no século XX), isto representaria (em proporção ao total de habitantes envolvidos) entre 4 e 9 vezes mais que as vítimas da segunda guerra.
Sempre escutei esses discursos de Morales e, apesar do entusiasmo inicial, algumas vezes tive dúvidas sobre seu verdadeiro significado. Eu acreditava ter entendido que seus inimigos eram os europeus racistas e imperialistas, mas imaginava que esse desconforto não excluiria os racistas e fascistas nascidos em outros países. Entretanto, após os fatos recentes, tudo me faz pensar que essa indignação é muito mais operacional que real. Porém, vamos devagar na análise da situação.
Ao longo do tempo, seu discurso foi perdendo substância, e nos últimos quatro anos suas referências aos europeus parecem menos uma crítica socio-histórica do vandalismo capitalista, e mais uma espécie de pressão moral para conseguir melhores condições econômicas para o mercado boliviano. Este tipo de chantagem emocional é permanente nos porões do capitalismo, mas acho deprimente que esta atitude seja rotulada de socialismo.
Quando em Bolívia se fala de “socialismo” se entende socialismo marxista, e não apenas um nome fantasia como os supostos “partidos socialistas brasileiros”. Mas o discurso confuso e sensacionalista de Morales impede entender qual é realmente sua ideologia.
Após a vitória da gangue ne0-nazista nas eleições brasileiras de outubro, Evo Morales mostrou-se “reflexivo”. Comentou com alguns jornalistas suas diferenças ideológicas com Bolsonaro, mas salientou que a América do Sul deveria permanecer unida. O apelo as unidades nacionais ou regionais sempre foi típico da direita e não de qualquer direita. Sempre foi uma proposta de governos imperialistas ou absolutistas: todos nos unimos e o mais forte fica com tudo. Por isso, essa concepção de Morales, de unidade com o pior que o neofascismo tem hoje no mundo (talvez com a possível excepção do ditador filipino) deixa um certo aroma de suspeita.
Mas, Evo surpreendeu ainda mais quando aceitou o convite brasileiro para participar da posse do Novo Regime, aquele sem partido, sem escola, sem saúde, sem negros, nem índios, nem gays, nem feminismo, nem ciência, mas, isso sim… com milhões e milhões de armas. Mesmo um interesse grosseiro em vantagens econômicas (aceitando qualquer renúncia a mínimos preceitos ideológicos ou éticos) não justificaria essa visita. Há meses, ou anos, que o chefe da gangue define sua política como de adesão incondicional aos EUA, a Itália e aos países fascistas do Continente (como Argentina), sendo que todos os outros seriam mulambadas.
Nem o próprio fascista Salvini, obssessionado pela captura de Battisti veio à cerimônia de posse. Ele até inventou um pretexto: aquele homem que impede as naves holandesas de salvamento entrar em águas italianas para salvar refugiado, fingiu ser contrário ao tortura. Marina Le Pen ficou furiosa quando perguntaram sua afinidade com os monstros tropicais. Até Trump ironizou sobre o apelido de “Trump Tropical” dado a Bolsonaro.
Naquela visita de Morales durante a posse de seu “Hermano”, sua posição ficou finalmente clara: quando falava de “europeus”, ele não falava de “europeus fascistas” e, portanto, também não de brasileiros fascistas. Ele falava daqueles que não eram úteis para a economia boliviana.
Me pergunto se, em algum momento, Morales se fez a si mesmo esta pergunta: existe um interesse tão valioso que possa fazer que um famosos líder nativista como ele adote como “Hermano” um sujeito que odeia todas as etnias não europeias, que visa o extermínios dos indoamericanos, que destrói a demarcação das terras milenares, que estimula o massacre e o linchamento? Me recuso a acreditar que Morales pense que guaranis, caiowaas e goitacazes sejam menos dignos que quéchuas, aymaras e mojeños.
A Trajetória do MAS Boliviano
O Movimento para o Socialismo (MAS) tem uma posição de centro esquerda. Nesse sentido, tem analogia, sobretudo no plano camponês, com o PT brasileiro e, como ele, também criou um marco partidário aos movimentos sociais. De maneira diferente do PT, o MAS possui uma organização algo difusa, nem sempre sistemática, compatível com suas raízes, que são especialmente rurais. Enquanto o PT possui uma formação própria da esquerda moderna e quase totalmente horizontal, o MAS mistura elementos do folclore revolucionário latino (por exemplo, o Guevarismo), com aspectos populistas do APRA peruano.
Sua contribuição à nacionalização da economia e à melhora das condições de vida do povo boliviano foram notáveis, comparáveis em escala com as do governo Lula. Morales e seu movimento conseguiram também avanços culturais, identitários e jurídicos, o que marca uma nova época em Indoamérica.
O mérito de Morales na condução desse projeto e de seu vice, Álvaro Linera, é consensual e, portanto, deve ser claramente separado da crítica que estou fazendo por sua “venda” de Battisti. Não objeto em nenhum momento a eficiência do governo de Morales para o progresso econômico boliviano, mas considero totalmente repulsiva a violação de critérios éticos e legais, totalmente compatíveis e, ainda mais, necessários, em qualquer organização de esquerda e, mais ainda, em qualquer comunidade civilizada.
Não acreditamos que os valores humanos sejam objetos de mercado, e que se possa fazer “compensação” entre valores éticos e econômicos. Se o padrão para julgar um governo é apenas o bem-estar econômico, o governo de Adolf Hitler deveria ser reabilitado, e os milhares de livros e filmes com críticas sobre ele deveriam ser esquecidos. Com efeito, em poucos anos como Führer, seus programas sociais atingiram 17% da população. Também deveríamos reabilitar o Stalin, que transformou a Russa medieval num país do século XX. Se isto fosse correto, seria preciso esquecer os milhões de pessoas que eles assassinaram.
A Venda do Escritor Italiano
O “erro” de Evo Morales envolve várias infrações de diverso estilo. Sou consciente do peso que possui a palavra traição, porém não uso essa palavra como faz a direita, para exigir que as pessoas comuns se submetam a suas regras. Traição é a violação proposital de princípios e acordos feitos de maneira voluntária e consoantes com a ética social.
A traição contra Battisti, mesmo que fosse para satisfazer pretensões de governos corruptos e autoritários, como no caso do Brasil e da Itália, viola vários princípios básicos da vida humana.
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- A solidariedade é um dos traços fundamentais que iluminaram a esquerda desde sua criação em 1799, junto à igualdade, liberdade, secularidade, internacionalismo e fraternidade. Quando ela foi traída brutalmente por Stalin, o stalinismo se tornou o mais odiado palavrão da linguagem de esquerda de todos os tempos.
- Ainda, Morales tinha a obrigação jurídica de cumprir a Convenção de Genebra de 1951, do protocolo de 1967 (em especial do artigo 33 contra a devolução de refugiados), dos quais Bolívia, Brasil e outros países são signatários, e de respeitar a Declaração dos Direitos Humanos de 1948.
- Também foi agredida a própria Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, e a Lei de refugiados que fora aprovada durante um dos governos de Evo Morales.
- O mais importante é a traição de Morales a suas próprias promessas. Alguns meses antes do golpe de Temer, eu fui informado que a Bolívia receberia Cesare Battisti em segurança quando ele decidisse ir. É claro que este tipo de promessas não passam por cartório, mas não tenho qualquer dúvida de que a fonte provinha do mais alto escalão do governo boliviano.
Quando se percebeu, nos últimos dias, o caráter traiçoeiro da ação contra Battisti, os burocratas de Morales disseram à imprensa que o italiano tinha sido expulso “porque estava ilegal no país e o CONARE havia negado o refúgio”.
O único critério legal para passar de um a outro país do Cone Sul (que existe desde há muitas décadas, bem antes da existência do Mercosul), é o porte do RG do país de origem. Então, Battisti não estava ilegal, e aguardava justamente ser informado do resultado de seu pedido.
Bajular os poderosos não é nenhuma novidade, mas é necessário ter clareza de que, além de certos limites, a traição pode destruir toda a obra realizada por um político, e colocar sob permanente suspeita qualquer ação futura. Não é em vão que alguns membros do governo de Morales se revoltaram contra sua decisão.
Para começar, será que a venda de Battisti deixa algum benefício para Morales? Parece que não. O que pode acontecer é que reforce as relações entre Brasil e a Itália, nas quais Bolívia nem sequer será espetador. Os governos de ambos os países (com algumas limitações que a Itália deve aceitar por estar na Europa) são quase gêmeos, no que se refere a corrupção, arbítrio, cleptocracia, racismo, xenofobia, e truculência política e jurídica.
Bolsonaro nem precisava entregar Battisti para bajular Salvini. Ele o fez, porque era mais uma cabeça para cortar: esquerdista, civil, cético e escritor! A vítima predileta para um sujeito bronco e brutal, uma mente forjada em granito, racista, cheio de ódios e truculento, que só sabe fazer brincadeirinhas de revólver que mostrariam retardo numa criança de seis anos.
Para uma pessoa baixa, alguém que é capaz de fingir um autoatentado, nada é melhor que uma vítima exatamente oposta: digna, inteligente e corajosa. Seu triunfo sobre ela representa (na mente vazia e mal informada destes hooligans) o triunfo sobre tudo o que eles odeiam: cultura, inteligência, esclarecimento.
Morales, que prestigiou a posse de Maduro e de Bolsonaro com poucos dias de diferença (a despeito de que este último esteja obssessionado por fazer desaparecer a Venezuela) parece não entender algo muito simples: ele está fora do jogo.
Para o Hermano brasileiro, a vida de Evo não vale nada mais que cada uma das vidas dos 170 indígenas brasileiros que foram assassinados por jagunços e policiais nos últimos meses, vale até menos que a do mestre MOA e da militante Marielle. Para Bolsonaro e sua nojenta gangue, Evo é apenas mais um membro da mulambada.
Quanto a Itália, os negócios com Bolívia nem sequer existem. A relação comercial entre eles nem aparece na estatísticas das exportações e importações. Um dia de comércio com o Brasil pode dar um monte de propina infinitamente maior que os lucros de “negócios” com Bolívia durante décadas.
Aliás, ambos os países sequer têm tratado de extradição, o que mostra que a subserviência de Morales foi um ato cuja miséria moral sequer pode ser entendida como a obediência a uma norma jurídica.
Para eles, fascistas tropicais e carcamanos, Evo não passa de uma figura pitoresca, como aquelas para as que fazem bullying durante os jogos de futebol e como as dúzias de orientais que deixam morrer quando devolvem os barcos cheios de refugiados para mar adentro.
Aliás, ao colocar-se do lado de Bolsonaro, por qualquer motivo que fosse, Morales não escolhe um parceiro neutral. Escolhe alguém que prometeu (e, se puder, fará) exterminar (entre outras) a única comunidade que apoiou Bolívia em todo momento e que ajudou ao crescimento de seu movimento: o PT brasileiro.
O Exemplo de Lula
Toda política requer algum sentido prático, e por isso em quase todo o mundo os povos desconfiam (em diversa medida) de seus políticos. Mas, esse sentido prático é grave quando, para obter certos logros, se atravessam todos os limites morais, com a conhecida ética de “o fim justifica os meios”. Este problema, porém, não seria difícil de equacionar atuando com honestidade, sensibilidade e um mínimo de coragem.
Morales deveria olhar o exemplo de Lula que, para fazer justiça com Battisti, precisou enfrentar a oposição suja e violenta de grande parte do aparelho político e jurídico, da totalidade da elite, e do 95% ou mais de mídia.
Quando Lula deu a condição de imigrante permanente a Battisti, tinha quase todos os poderes do Estado contra ele. No Supremo Tribunal apenas quatro juízes defenderam sua causa. Das bases políticas, teve em seu favor a grande maioria do PT e de pequenos partidos de esquerda, junto com as organizações de direitos humanos, sindicatos, ONGs e alguns grupos de juristas. Mas, deveu confrontar-se com calúnias, mentiras e intrigas mirabolantes de todos os outros partidos. É verdade que os que apoiaram Lula foram as pessoas mais esclarecidos e corajosas, mas também as que tinham menos poder. Até os militares intrometeram suas botas num problema que era puramente jurídico e social.
Além disso, Lula foi provocado pela maioria da comunidade italiana, que, mesmo com o passo do tempo, continua saudosa de da terra de seus bisavós, na que não há negros, nem índios, nem religiões africanas, e todo mundo ia direitinho a missa os domingos. A pior sabotagem veio dos que (aproveitando uma lei iníqua) oscilam entre serem deputados italianos ou brasileiros, dependendo de qual dos dois países tenha mais facilidades para produzir propinas em cada momento.
Lula enfrentou uma das mídias mais panfletárias, mentirosas e traiçoeiras do planeta, e teve a dificuldade de se fazer entender a uma população que durante cinco séculos foi mantida à margem da informação e da literalidade.
Até dentro do próprio governo houve sabotagem. A representante de Itamaraty no CONARE, Gilda Santos Neves, votou contra Battisti porque, segundo ela mesma disse, não queria desagradar a Itália. Mesmo com um chanceler considerado progressista, Itamaraty sempre se inclinava a favor dos poderosos e das estruturas estabelecidas, poucas vezes a favor dos perseguidos (houve cinco excepções de refúgio verdadeiramente merecido entre 1991 e 2007).
O representante do MJ no CONARE, Antonio Barreto, também votou contra, sem que seus chefes o substituíssem, como teria sido necessário. A Igreja usou sua tática favorita: como seu voto podia ter desempatado, simplesmente não votou, o que deixou em algumas mentes uma dúvida capital: Deus estava a favor ou contra Battisti?
O único membro do CONARE que esteve de maneira extremamente decidida a favor do Refúgio, foi o chefe do ACNUR no Brasil, Javier Cifuentes, mas, “por acaso”, o ACNUR é o único membro do Conare que não têm voto, sendo também o único que realmente entende de refúgio. Cifuentes foi obrigado a sair do Brasil pela pressão dos facínoras italianos e a covardia da ONU que cedeu às pressões de Roma, e Lula só teve colaboradores realmente operacionais em Eduardo Suplicy, Tarso Genro e Eduardo Greenhalgh.
O caso de Evo é oposto. Ele sempre teve apoio do MAS, e da população aconchegante e generosa do país. Mesmo as classes médias e altas são muito menos fascistas do que as brasileiras, como o mostram os resultados eleitorais, e até as nuances dos numerosos golpes de estado no passado. Além disso, a mídia boliviana é bastante equânime comparada com outras da América Latina. Se Morales tivesse cumprido com sua obrigação jurídica de reconhecer o refúgio, é improvável que tivesse que enfrentar, como Lula, uma campanha odiosa de difamação que dura até hoje, e que contribuiu muito a sua perseguição, e que incluso foi herdade por Dilma.
Além disso, Evo tinha a seu favor todas as leis internacionais. Para evitar o martírio de Battisti, era preciso apenas não violá-las.
Perdas e Ganhos
O que ganhou Bolívia com a TRAIÇÃO de Evo?
Gostaria de saber se o próprio presidente de Bolívia tem alguma clareza sobre isso. Conseguiu uma palavra de aparente gratidão dos Godfathers, que em nenhum momento mostrou mais que um desdenhoso reconhecimento pelos serviços que os bolivianos deveriam prestar. Suponhamos que ele obtenha, em adição, um excelente contrato na venda de gás ao Brasil, coisa que, por sinal, parece difícil, tendo em conta a política econômica dos neo-nazistas brasileiros. Mas, conjecturemos a hipótese que seria mais favorável.
Devemos pensar que, desde há séculos e até milênios, povos da Europa, África, as Américas e outros têm podido viver graças à solidariedade. Pessoas que não tinham condições para cortar lenha ou comprar de outros, podiam cozinhar seu alimento na fogueira dos amigos, e, os que também não tinham alimento, recebiam uma parte da própria comunidade.
Mas, o que acontece quando a solidariedade é desprezada, quando ela é substituída pela esperteza e a traição?
Por que, apesar de seu PIB muitíssimo menor, e de estar bem longe do Mediterrâneo, a Suécia recebe quase o dobro de refugiados que a Itália. Por que existem culturas onde (a média de) as pessoas se importam com os outros, e há outras na qual isso é excepcional? Talvez o motivo do egoísmo seja que a pessoa não queira se incomodar em ser solidário sabendo que pode ser vítima da traição.
A tradição pode ter um parâmetro, é verdade. Alguns traem em assuntos importantes (por exemplo, um negócio bilionário), outros em pequenas coisas… Ora, se alguém pode trair as leis de seu país, as resoluções da ONU, a tradição bicentenária da solidariedade e a condição humana, em troca de um contrato comercial que talvez seja efêmero… quem pode sentir-se, dentro do povo trabalhador, de ser traído. Só como o exemplo, pensemos nas tarifas da gasolina que criaram tanto mal-estar na Bolívia em 2011.
Aliás, se você trai em seu próprio território, por que não faria não alheio, onde muitos pretextos geopolíticos poderiam aliviar a consciência dos hierarcas (casos eles tenham)! Vejamos:
Bolívia é um país pequeno, mas é importante regionalmente, como o único governo democrático do Cone Sul, junto com Uruguai. Talvez ela não seja decisiva em questões geopolíticas mas pode ser coadjuvante. Será que os povos que se consideram irmãos com ela poderão seguir confiando nessa espécie de espírito “progressista internacional tão alardeado?
Façamos um raciocínio simples.
Se Morales traiu uma pessoa que não conhecia, que não fez nada contra ele, que é perseguida por motivos que todos sabem que são falsos (alguns admitem, outros negam, mas todos sabem), alguém que nunca foi liderança de nada (exceto literatura), alguém que há 41 anos sequer é um ativista ou um aderente político…
Se Morales traiu uma pessoa assim, apenas para receber um sorriso e quiçá alguma singela compra de gás por parte de Bolsonaro, e apenas um aperto de mão desdenhoso de algum tira italiano:
…qual seria sua atitude se Bolsonaro e Trump lhe pedissem ajuda contra MADURO, a figura que assombra os pesadelos daqueles fascistas?
Morales esteve na posse de Maduro, como esteve na de Bolsonaro. Por qual optará quando as coisas esquentem? Ele representa apenas um 5% do poder do Brasil, mas todos sabemos que, na guerra, como nos negócios, cada centavo conta.
E… nesse caso, para donde olharão os 11 milhões de bolivianos que conseguiram melhorar em sua vida graças a um Morales de esquerda, cuja personalidade verdadeira talvez nunca conheceram?
O Fim da Paz
América Latina teve uma colonização muito diferente a de outras partes do mundo, como Ásia, África ou o Pacífico. Liderada por países atrasados, a conquista da América gerou rapidamente conflitos que foram resolvidos com uma violência inusitada e ainda não ultrapassada. (Talvez o único de similar crueldade, mas ainda assim não equivalente, seja a devastação belga no Congo).
Um fato óbvio é que tanto as nações nativas, quanto a população africana trazida pela escravocracia, foram totalmente marginalizadas da vida política e social dos países fracionados pela Espanha, Portugal e o Vaticano. Inclusive, as línguas originárias, que se mantiveram como idiomas oficiais na África e na Ásia, foram reduzidas a mais absoluta marginalidade na América do Sul.
Por isso, entre outras coisas, foi grande o sucesso do MAS e de Evo Morales ao reconhecer o protagonismo das culturas nativas, um triunfo importante que Evo deveria ter conservado para que pudesse servir como exemplo às novas gerações.
Afinal, não é infinitamente mais importante o agradecimento de um povo simples e generoso, que a tolerância (precária) de um bando de fascistas, mafiosos, imperialistas e racistas?
O “embranquecimento” das Américas gerou o caudilhismo que colocou entraves gigantes a qualquer comunicação internacional, fomentando o chauvinismo, a xenofobia e favorecendo a superstição e o misticismo. Não sei se essa é a principal, mas foi pelo menos uma das mais graves dificuldades para a internacionalização da esquerda, um fenômeno que nunca aconteceu nas Américas. Ao existir um hiato qualquer na relação entre as esquerdas do continente, a possibilidade de formar uma rede de cooperação pacífica e produtiva fica cada vez mais distante.
Ao eliminar-se a lealdade como valor sociopolítico e aceitar-se a traição como remédio a qualquer possível ou imaginário problema econômico, o cenário fica apto apenas para um único tipo de política: a política oportunista, o populismo sórdido, o pragmatismo desprovido de ética, como se percebe nos partidos brasileiros ditos de centro como PDT, PSB ou REDE. (Para a direita propriamente dita, esta comparação nem faz sentido.)
O amoralismo do governo boliviano (que nunca foi evidente nas gestões anteriores de Morales), ao aliar-se com os piores fascistas da América e da Europa, ao cuspir sobre a mais importante instituição internacional criada pela ONU, e ao ajudar uma pessoa (quemquer que seja) a receber uma morte por tortura (como morreram milhões de índios nas mãos dos europeus), quebra a confiança que a esquerda do continente depositava no líder cocaleiro que tantas esperanças criou em todos nós faz 20 anos.
Será possível reestabelecer essa confiança? O futuro não parece muito rico em oportunidades. Aliás, quem tem a direita como novo aliado, por que precisaria a confiança da esquerda?
Ao serem fechados os canais da confiança, o desespero da população pode levar novamente a uma indesejável onda de violência. Isto não é mera fantasia. A Bolívia já viveu sequencias de golpes e ditaduras com frequência vertiginosa. E, em menos medida, isso aconteceu em toda a Indoamérica. Afinal, os enormes conflitos dos anos 70, que só se amenizaram na reunião de Contadora, não foram simples produto da mentalidade “foquista” de Cuba. Houve uma necessidade do povo de não morrer de fome, miséria e doenças, desgraças às que uma morte num campo de batalha parecia preferível.
Há certos boatos (não sei se verdadeiros) de que a própria base camponesa do MAS teria preferido uma nova chapa nas eleições de 2019. Isso não significa ignorar os grandes triunfos dos programas de Evo. Tem muito mais a ver com a cultura tradicional plurinacional de Bolívia. As culturas nativas americanas e africanas não têm laços poderosos com o autoritarismo, e talvez seja o momento de refletir sobre isto.
As Vozes de Protesto
Raúl Garcia Linera é irmão de Álvaro, o companheiro de chapa de Evo Morais, e, junto com seu irmão, foi um dos mais ativos militantes do movimento revolucionário Túpac Katari em 1992. Descrevo apenas um trecho da inflamada indignação de Raúl pelo traição contra o refém italiano cometida pelo governo. Há muitas outras manifestações semelhantes na sociedade boliviana, mas acredito que esta será suficiente.
“Por primera vez me siento avergonzado y decepcionado por el accionar gubernamental fundamentalmente reñido con la Moral Revolucionaria y grito con toda mi alma: ESTE ACCIONAR ES INJUSTO, COBARDE Y REACCIONARIO!”.
Junto a ele, também outros setores do governo se fizeram ouvir, e a mídia boliviana noticiou o mal-estar existente por causa deste desprezo pela justiça e a submissão aos que, há poucos meses, o próprio Morales considerava seus grandes inimigos: os fascistas.
O MAS conseguiu crescer e consolidar-se, em parte, por causa dos movimentos da Via Campesina, e também pela contribuição dos movimentos sociais no Brasil. Creio que a ideia de Morales, de que a venda de Battisti traria um período de tranquilidade a seu governo foi, também, errada. Embora improvável, não é impossível que a máfia brasileira o considere seu “irmão”, mas, para isso, deverá cumprir seus deveres de família.
- E o principal sonho de seu Hermano é destruir toda a esquerda brasileira. Como fará Evo Morales para mostrar a seus seguidores que essa é a posição correta?
Em realidade, a verdadeira esquerda boliviana (os setores mais avançados do MAS) parecem ter descoberto há alguns anos a verdadeira face conservadora de seu líder. Este texto em espanhol é claramente elucidativo. Aos que desejem conhecer a cara real do líder, aconselho a leitura deste trabalho, social, científica e literariamente excelente (em espanhol).