Em minha coluna anterior, continuamos a série de textos que serão publicados semanalmente sobre a luta do povo negro, partindo de algumas considerações feitas pela esquerda pequeno-burguesa em reação à iniciativa criminosa de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, em homenagear a princesa Isabel do Brasil. No texto de hoje, continuaremos a nossa discussão, dando atenção particularmente ao protesto contra a morte do menino Miguel.
IV – “Lugar de fala”
Discutimos ao longo das três últimas semanas que a abolição da escravidão foi uma revolução frustrada — isto é, um recuo do regime político em reação à mobilização dos escravos —, que a luta do povo negro é uma luta de características revolucionárias — ou seja, diretamente relacionada à luta pelo poder — e que a abolição foi apenas um capítulo de um conflito permanente no interior da sociedade burguesa. Faremos o debate, neste texto, sobre o movimento negro e os setores que se reivindicam como “autoridade” deste movimento.
Nos últimos anos, surgiu na academia o conceito de “lugar de fala”. O verdadeiro significado desse termo é incompreensível — não há um consenso do que realmente seja o tal “lugar de fala”. A filósofa Djamila Ribeiro, que é uma das mais famosas adeptas do termo, chegou a publicar um livro de 68 páginas chamado “O que é lugar de fala?”, mas não conseguiu responder à própria pergunta. Se os grandes especialistas no assunto não conseguiram definir o que é “lugar de fala”, eu, modestamente, recuso tal missão.
Embora eu não pretenda, nesse artigo, definir o que seja “lugar de fala”, posso, como militante, relatar o uso que o termo tem. Sempre que o tal “lugar de fala” é mencionado, alguém está tentando censurar ou descredibilizar o seu adversário porque este não teria o direito de discutir determinada questão. Cito três exemplos muito comuns para ilustrar essa questão:
a) Um branco não poderia falar sobre a questão do racismo
b) Um homem não pode discutir a luta das mulheres
c) Um heterossexual não pode tratar da perseguição aos LGBTs
Obviamente, as pessoas que fazem uso de tal expediente procuram se basear em algum tipo de raciocínio lógico abstrato. No entanto, a realidade não consegue se adaptar ao mito do “lugar de fala”. Afinal de contas, seus defensores teriam de explicar: a opinião do racista Fernando Holiday deve ser levada em consideração, uma vez que ele é negro? Perguntamos o mesmo sobre Sérgio Camargo: seus ataques ao povo negro estão referendados pela cor de sua pele?
De fato, houve quem tentasse defender Fernando Holiday. Na época em que o jovem mercenário do MBL estava colocando as manguinhas de fora e atacando abertamente a esquerda, a própria Djamila Ribeiro saiu em defesa do fascista mirim. Segundo ela, as “pessoas brancas” não poderiam chamar Fernando Holiday pelo que de fato é: um capitão-do-mato, um lacaio da burguesia.
Os principais defensores do mito do “lugar de fala” difundem também uma outra falsificação bastante conhecida no interior da esquerda. Segundo essas pessoas, existe um “movimento negro” que não é expresso por organização alguma e que seria o responsável por fiscalizar o bom uso do “lugar de fala”. Será mesmo?
Seria uma contradição que eu, após uma sequência de três textos sobre a história da luta do povo negro, dissesse que não existe um movimento negro. O movimento negro, obviamente, existe: é o resultado da mobilização do negro em meio às contradições da sociedade capitalista. A existência do movimento negro está comprovada, na prática, pelas lutas contra a escravidão e pela revolta da chibata.
Mas o movimento negro, por mais óbvio que possa parecer, são os negros em movimento, e não uma instituição invisível, abstrata e difusa. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) é uma organização que representa em grande medida o movimento da classe operária porque é uma organização que foi fundada pela luta dos trabalhadores contra a ditadura militar e que, até hoje, conserva milhares de sindicatos filiados. Não há qualquer instituição hoje, no Brasil, que seja resultado de um grande movimento de massas do povo negro, nem que conserve relações com uma quantidade expressiva de negros. Nesse sentido, é possível dizer que há um movimento negro e que esse movimento se manifesta diariamente nas sucessivas lutas do negro por sua sobrevivência. Mas não há instituição alguma que possa atribuir a si própria a autoridade de representante dos interesses dos negros.
Compreendido isso, nos damos conta como, de maneira mais ampla, se aplica o “lugar de fala”: alguém ou algum grupinho restrito, quando vê seus interesses individuais ameaçados, apresenta suas credenciais de “movimento negro”, apresenta seu carimbo de “lugar de fala” e procura se impor de maneira truculenta. Não precisaria muita discussão para entender que quem defende seus interesses individuais é o pequeno burguês, não o negro que se vê como explorado. Esse método policialesco, inclusive, nada tem a ver com o negro, que nutre o mais profundo ódio pela polícia, conforme tem se visto nos protestos nos Estados Unidos.
Recorrendo novamente à obviedade, digo: para saber o que defende o movimento negro, seja hoje, seja na história, não adianta perguntar aos “policiais” do “movimento negro” fajuto, mas sim observar o que a mobilização do povo negro diz. E o exemplo do protesto contra a morte do menino Miguel, no Recife, é bastante significativo neste sentido. Alguns policiais do “movimento negro” fajuto decidiram que seria proibido que o ato tivesse faixas que pedissem o Fora Bolsonaro. No entanto, o povo negro e pobre das favelas do centro do Recife entrou no ato e abriu uma faixa, ignorando a ditadura da esquerda pequeno-burguesa. Os organizadores, prontamente, vieram correndo apresentar suas credenciais. Ora, mas o povo negro e pobre não tem “lugar de fala”?
Apenas rejeitando completamente esses métodos tipicamente pequeno-burgueses é que é possível compreender a essência da crítica que deve ser feita ao fascista Sérgio Camargo. Homenagear a princesa Isabel não é um crime simplesmente porque ela não possui “lugar de fala”. Nem muito menos o motivo pelo qual Sérgio Camargo não representa os interesses do povo negro é que uma determinada organização decidiu entrar com um processo contra suas medidas. Sérgio Camargo deve ser enfrentado porque o movimento negro, isto é, a história de luta do povo negro, já demonstrou, na prática, que é completamente contrária ao programa que está sendo levado pelo “capitão-do-mato” — conforme lhe apelidou o próprio irmão — do governo Bolsonaro.