O lema central da burguesia diante da progressiva crise do regime político no Brasil é a recuperação do chamado centro político, desmoralizado politicamente após o colapso do pacto da Nova República, e pela intensificação da polarização política após a adesão da burguesia ao golpismo como política unificadora.
Mas, para isso, é preciso limpar a ficha corrida de políticos odiados pelo povo, não sem motivo, diga-se de passagem. Por isso, em resposta à crise do bolsonarismo, a burguesia golpista procura desesperadamente constituir uma “face humana”, “cientifica”, “democrática” e “ progressista”. Além do mais, setores importantes da burguesia precisam de uma reciclagem de seus representantes políticos tradicionais, sendo que a melhor maneira de efetuar essa inaudita operação é o estabelecimento da sua “virada da página do golpe”, por meio de uma “aliança” conveniente com aqueles que a própria burguesia desalojou do Palácio do Planalto, pelo golpe de 2016.
A esquerda oportunista, tendo o PCdoB e a direita do PT como principais artífices, rapidamente salientaram o desejo por essa aliança com os setores mais “responsáveis” da direita golpista. Daí o fomento da busca desesperada pela Frente Ampla com a direita tradicional, que se expressa no apoio aos presidentes das casas legislativas ( Alcolumbe e Maia), políticos do DEM responsáveis por uma pauta de retiradas de direitos do povo, como a Reforma da Previdência e, agora, com o congelamento dos salários dos servidores públicos e da aliança em “nome da vida” com os governadores de extrema-direita Doria e Witzel.
O convite para que verdadeiros bandidos políticos participassem do 1º de maio unificado das “centrais” representou a expressão dessa política de aliança com os inimigos dos trabalhadores, promovida pela burocracia sindical, vinculada à esquerda conciliadora. Pois bem, devido à intensa campanha de denúncia promovida pelo PCO, a esquerda pequeno-burguesa, como o PSol e o PSTU, foi obrigada a pular do barco na última hora, quando já eram divulgados cartazes do 1º de maio unificado.
Entretanto, demostrando muito mais um lamento do que uma crítica, os setores radicais do PSol, em particular a corrente Resistência, constituída por egressos do PSTU, declararam, de maneira ruidosa, que no 1º de Maio uma frente com a burguesia não era conveniente, mas uma aliança com setores da direita era não somente possível como “necessário e urgente” para “combater Bolsonaro” e “defender as liberdades democráticas”.
Para justificar “teoricamente” essa aliança com a burguesia “progressista”, um dos gurus da esquerda pequeno-burguesa, Valério Arcary, escreveu o artigo “Unidade de ação e Frente Ampla são duas táticas diferentes” (publicado no site da esquerdaonline no dia 1º de maio.
É importante sublinhar que o convite para FHC, Maia, Doria, entre outros, para o 1º de maio, serviu para esclarecer de maneira cabal o verdadeiro caráter da “frente ampla” como uma “aliança” com inimigos dos trabalhadores. A crítica promovida pelo PCO é muito mais contundente do que a recorrente critica abstrata da “colaboração de classes” feita em discursos inflamados pela esquerda pequeno-burguesa, pois a crise aberta pela participação da direita no 1º de maio é um exemplo concreto, que pode ser percebido pelo conjunto dos trabalhadores.
Acontece que a crise da política de frente com a burguesia não se resume ao 1º de maio. Diz respeito a toda uma política de aliança com a direita que a esquerda está promovendo na atualidade. Por isso, os acontecimentos do 1º de maio também serviram para colocar em xeque a própria política da esquerda pequeno-burguesa, apesar de ela não ter participado da live das “centrais”.
O artigo de Arcary procura, com seu ar professoral, confundir as questões, tentar escamotear o conteúdo da política de traição de classe, não somente da esquerda reformista (PT/PCdoB), mas também do PSOL, e com uma discussão aparentemente “histórica” e “conceitual” embaralhar as cartas novamente, as que o 1º de maio colocou de maneira absurdamente límpida na mesa.
Para Valério Arcary, o que justificaria fazer uma frente com a burguesia “A” contra a burguesia “B”? O critério utilizado pelo dirigente do PSol é saber quem é o “pior inimigo” ou o “inimigo central”. Uma vez escolhido o mais “malvado”, você estaria livre para fazer sua aliança sem nenhum tipo de trauma com o “direitista preferido”, que seria digamos assim, o “bandido bom”.
“Em qualquer situação política é necessário, em primeiro lugar, responder a uma pergunta: qual é o nosso inimigo central? Esse é sempre o centro de uma definição tática. Porque não é possível lutar contra todos, ao mesmo tempo, com a mesma intensidade. Se todos os inimigos são prioritários, não há prioridade. O problema se colocou de forma aguda durante as eleições de 2018, e agora novamente.” (“Unidade de ação e Frente Ampla são duas táticas diferentes”, site esquerdaonline)
O argumento de Arcary parece razoável, afinal não é possível lutar contra “todos” os adversários o tempo todo. Então, a proposta é estabelecer os “inimigos prioritários”, passar um risco no chão, e fazer acordo com todos os outros classificados de “não prioritários”.
Os artigos do autor até parecem aparentados com alguma espécie de marxismo, até mesmo de trotskismo, pois, na década de 1930, não era Trótski que defendia que era possível fazer acordos até mesmo com o diabo se fosse para derrotar o inimigo principal? Podemos recordar ainda a crítica à política do stalinismo diante da ascensão do nazismo, em que o Trótski defendia estabelecer distinções entre os adversários.
Acontece, como afirmou o revolucionário russo, existem diferentes tipos de situações, e o uso de analogias históricas não deve ser feita ao gosto do freguês, mas de acordo com critérios de eficácia analítica e esclarecimento para ação. Nesse sentido, a abordagem usada por Valério Arcary e sua defesa da “frente única” em oposição à “frente ampla”, não passa de uma escolástica, ou melhor, de enrolação para justificar a participação da Resistência e do PSol na frente ampla com a burguesia, a qual deu o golpe de Estado em 2016 e agora aparece com a capa de “democrática”.
Esse percurso de buscar o “menos ruim” ou o “golpista mais democrático” já se expressava no artigo de adesão ao “Fora Bolsonaro” de Valério Arcary. Assim, após rejeitar durante muito tempo o “Fora Bolsonaro” com mil e um argumentos (Diário Causa Operária fez algumas matérias sobre esses “argumentos”), o dirigente, ex-PSTU, procedeu um “giro tático necessário” para o “Fora Bolsonaro”, que na verdade é um apoio indisfarçável ao impeachment, ou seja, ao vice Hamilton Mourão.
No artigo publicado no esquerdaonline dia 24 de abril, “Fora Bolsonaro é um giro tático necessário. Um 1º de Maio com a presença de FHC e Maia é um desastre”, Valério Arcary já explicitava o apoio “tático” não simplesmente ao “Fora Bolsonaro”, mas a um setor do próprio governo Bolsonaro diante da crise do governo.
“Seria uma evolução limitada, porém, progressiva, porque Bolsonaro é um neofascista, e sua queda uma vitória democrática, ainda que muito parcial, se for para abrir o caminho a Mourão. Mas uma tática parlamentar não é o mesmo que uma estratégia política.” (“Fora Bolsonaro é um giro tático necessário. Um 1º de Maio com a presença de FHC e Maia é um desastre”, site esquerdaonline).
Notem que o caso “agudo” citado por Valério Arcary, não é golpe de 2016, mas as eleições de 2018. Bem, em 2016, nunca é demais lembrar, o nosso autor, então no PSTU fez declarações na Rede Globo, dizendo que “não havia golpe algum”, e que não era “correto” apoiar o governo diante da oposição de direita. Afinal, naquela época, Arcary não estabeleceu critérios de prioridade, e “todos eram iguais”.
Por outro lado, o exemplo das eleições não confirma a tese de Arcary, mas demostra a completa farsa do “caráter democrático” da burguesia golpista, que é apresentada como “humana” e “ responsável” em 2020. Nas eleições 2018, os partidos tradicionais da centro-direita, como o DEM, MDB e PSDB foram simplesmente varridos do cenário político nacional, com as candidaturas presidenciais amargando um desgaste eleitoral notável. Naquele contexto, a burguesia não teve outra alternativa possível a não ser unificar-se em torno da candidatura grotesca da extrema-direita.
O governo Bolsonaro, constituído por diferentes alas, não conseguiu, pela própria natureza política, estabelecer uma governabilidade mais ou menos estável, o que tem provocado cada vez mais divisões entre as forças políticas golpistas. Para a burguesia, a saída principal para crise do governo Bolsonaro (em uma eventualidade de Bolsonaro não cumprir o mandato, mas mesmo em 2022) é a entrega da presidência aos políticos tradicionais do centro político.
Arcary advoga aliança “pontual” com a burguesia golpista “democrática” contra Bolsonaro em todas as ocasiões possíveis. Para não deixar dúvida, o autor apresenta exemplos cotidianos de por que precisamos apoiar os “inimigos não prioritários” contra Bolsonaro; afinal, “se todos os inimigos são prioritários, não há prioridade”.
“O maior perigo não é o abuso de poder do STF contra Bolsonaro, mas a concentração de poder nas mãos de Bolsonaro. Outro exemplo: não é possível, no 1º de Maio, unidade da CUT e Força Sindical para garantir a presença de FHC, Doria, Wizel, Maia e Alcolumbre.” (“Unidade de ação e Frente Ampla são duas táticas diferentes”, site esquerdaonline)
Dessa forma, Valério Arcary em todos os embates, busca o estabelecimento de um “acordo pontual” com o “bandido bom”.
Na verdade, como explicado anteriormente, a burguesia precisa da frente ampla para se posicionar para um melhor controle do regime político, mas pode eventualmente chegar a um acordo com o próprio Bolsonaro, uma vez que, mesmo com os embates, é o Congresso dominado pelo centrão e o STF, bem como o Exército, que deram o golpe, e são os responsáveis pela própria sustentação de Bolsonaro.
Do ponto de vista da esquerda, a frente ampla é tão-somente a concretização da política da “virada da página do golpe”, que nada mais é do que a busca por uma acomodação dentro do regime político. Nesse sentido, Valério Arcary procura apresentar a mesma política capituladora com outra roupagem; mas, a todo momento, é obrigado a revelar-se politicamente. Na sua argumentação fantasiosa, o que o PSol e a esquerda pequeno-burguesa fazem é “frente única antifacista” com acordos pontuais com a burguesia; e o que os outros fazem é “frente ampla” eleitoral com a burguesia. Apesar dos senões no 1º de maio, a posição de Valério Arcary representa como a esquerda pequeno-burguesa está atrelada ao regime político, ficando a reboque da direita burguesa.