“Quem controla o passado, controla o futuro”. Essa frase do romance 1984, de George Orwell, justifica o modus operandi do Ministério da Verdade que, a despeito do nome, fazia tudo menos dizer a verdade. O trabalho dessa instituição era o de manipular as informações: um aliado de hoje se transformava em inimigo; o inimigo em aliado para logo em seguida tudo poder ser desdito, ressignificado e recombinado ao sabor das circunstâncias, das necessidades e interesses políticos. Qual era o resultado prático dessa ação? Apagar o passado. O Ministério da verdade era, vejam só, um grande incinerador.
Dominar o passado, ou melhor, a informação, é um dos aspectos chave de quem controla a política. O que fazem os grandes meios de comunicação, o quarto poder, senão manipulá-la, distorcer o que houve no passado, destacar ou omitir fatos, de acordo com seus interesses de classe? A mesma imprensa que finge dar voz às setores escolhidos dentro dos oprimidos e se passa por democrática, é a mesma que trata um Elon Musk como ‘empresário e filantropo’. Esse indivíduo, a respeito do golpe na Bolívia em 2019, publicou no Twitter a seguinte frase: “Vamos dar golpe em quem quisermos”. Quantas pessoas morreram no golpe? Ficaram ainda mais pobres? Não terão acesso a uma vida digna etc? O que permite esse CEO falar como um verdadeiro senhor de escravos, hoje, é a existência da dominação de classes, não uma pretensa celebração (ideológica) do passado, uma vez que a dominação se dá pelo uso da força, tem base material. Temos que combater os inimigos de agora, os inimigos reais.
Concordemos com a afirmação de Vladimir Safatle de que “nosso tempo é espesso. Nas camadas da espessura convivem mortos e vivos”. Pois bem, essa convivência precisa considerar esses mortos e vivos em todas as suas contradições se desejamos de fato a “modificação do ‘horizonte de possibilidades do presente e do futuro”. A tentativa, como se vem fazendo, de julgar uma personagem do século XVII com preceitos atuais coloca em xeque praticamente todo o passado humano. Nossa história foi erigida sobre o sangue e a dominação. Reduziremos todos os imperadores romanos e napoleões a um único adjetivo: genocidas? Não seria melhor compreendê-los dentro dos contextos aos quais pertenceram? Se não é justo que alguns sejam vistos como heróis, pelo menos que se lhes atribua a devida importância histórica.
É preciso rebater a ideia de que somos um “país que se acostumou a ver militares agindo como se estivessem em 1964”. É uma acusação injusta Por qual motivo a população tem saído às ruas enfrentando os perigos de uma pandemia se está ‘acostumada’ aos desmandos? De fato existe a tutela militar sobre nossa política, mas isso não é fruto de um esquecimento, de um evitar-se falar do passado, que possibilita que eles ajam desse modo. Essa é a expressão da correlação de forças entre a esquerda e a direita, a maneira como tem se desenvolvido a luta de classes no Brasil e grande medida na América Latina. O que devemos perguntar é: a quais interesses as nossas Forças Armadas têm servido desde 1964?
A queima da estátua de Borba Gato não é, nem de longe, “uma das mais importantes ações políticas desses últimos meses”, é, isto sim, uma demonstração de oportunismo de alguns setores da esquerda que, em vez de agirem de forma unificada, politizada, se valem de ações pirotécnicas, espetaculosas, que se pretendem passar por revolucionárias, mas acabam fortalecendo as posições da direita. Como exemplo, podemos destacar dois desdobramentos imediatos dessa ação: primeiro, a prisão totalmente arbitrária de um ativista envolvido no episódio; e, segundo, o aparecimento de pichações da palavra “Borba Gato” sobre a imagem da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada pela extrema-direita em 2018. Os fascistas, que até então não tinham, e continuam não tendo, a menor ideia de quem teria sido o bandeirante, acaba de ganhar um novo símbolo para cultuar. Presente dado a eles de mão beijada pela esquerda!
É um erro acreditar que o ataque à estátua se trata da queima de um símbolo. O “Borba Gato genocida” é um construto e, como se não bastasse, tentam colar sua imagem à de Jair Bolsonaro, Hitler, Mussolini, Stroessner… a lista é grande e absurda. Também não se pode comparar esse evento com a Queda da Bastilha. Se tivesse ocorrido o incêndio ou a depredação de delegacias de polícia, o símbolo vivo de onde operam os genocidas de carne e ossos dos dias atuais, talvez pudéssemos tentar fazer um paralelo com os da Revolução Francesa. Agora, atacar a imagem de um indivíduo que viveu há três séculos não passa de subterfúgio, de diversionismo.
Para Safatle “uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz ‘assim foi e assim deveria ter sido’”. Voltemos um pouco no tempo, aproximadamente um século após a morte de Borba Gato, um sujeito que foi cantado em verso e prosa, que foi retratado por um David, que motivou a Eroica de Beethoven, que foi visto por Hegel como “o espírito da época”; esse homem foi, com suas guerras, responsável pela morte de algo em torno de sete milhões de pessoas, sem falar dos estupros, mutilações, destruição etc. Devemos sair por aí queimando seus retratos? Vamos reduzir a importância e o papel histórico de Napoleão ao de um mero genocida? E o que dizer das estátuas dos Césares? Ora, seguindo aquele raciocínio, devemos concluir que as estátuas de Aristóteles celebram a Civilização Grega, que invadia, matava, escravizava… Vejamos o que dizia Aristóteles em seu livro I da Política: “Uma família completamente organizada compõe-se de escravos e pessoas livres”; “Existem dois tipos de instrumentos: uns inanimados, outros animados.(…) o trabalhador é uma espécie de instrumento”; “O escravo (é) uma propriedade instrumental animada”; “O homem que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a outro, é escravo por natureza: é uma posse e um instrumento para agir separadamente e sob as ordens de seu senhor”; “Aquele que manda e aquele que obedece são de espécies diferentes”; “Todos os que não têm nada de melhor para nos oferecer do que o uso de seus corpos e de seus membros são condenados pela natureza à escravidão”. Bem, parece que não nos restará outra opção que a de banir Aristóteles do ensino de Filosofia.
Como já foi dito, esse ataque ao passado nada mais é que um subterfúgio. De que adianta queimar símbolo do nosso Período Colonial quando, hoje, parte da esquerda quer usar o verde-amarelo nas manifestações, cores que se tornaram símbolo do fascismo no Brasil? Como é que se luta contra o genocídio convidando o PSDB para cerrar fileiras nas manifestações, justamente o partido que controla uma das polícias mais letais do Planeta, uma polícia especializada em massacrar a população negra, especializada em cegar com balas de borracha os trabalhadores que não querem se acostumar com a escravidão assalariada? A continuar assim estaremos no caminho certo… da derrota.
__________
Citações de Aristóteles retiradas do Livro Aristóteles A Política – Martins Fontes, (2006 – 3ª ed.), trad. Roberto Leal Ferreira (págs 9 a 12).