Um país paradisíaco, com flores espalhadas por toda a parte, sorrisos estampando o rosto de héteros, homossexuais, transexuais, pansexuais, bissexuais etc., arco-íris sobre índios dançando e cantando músicas ancestrais, pássaros voando e entregando mensagens de amor. Esse é o Chile pintado por Emir Sader.
Em artigo batizado de “Chile, entre o passado e o presente” e publicado no Brasil 247, o intelectual petista louva o presidente Gabriel Boric e a “Assembleia Constituinte”, que estariam levando o Chile por um caminho altamente progressista, inverso ao que o país tomou desde o golpe de 1973 contra Salvador Allende.
“A vitória de Boric representou a virada política mais importante do Chile desde o governo de Salvador Allende”, opina o colunista. Prova disso seria a composição de seu governo e a nova constituição elaborada pela Convenção Constituinte.
Sader, no entanto, apega-se a formalidades e recusa ver a realidade concreta. A aliança de Boric com os empresários chilenos e estrangeiros ─ incluindo com o governo dos EUA e seus órgãos de perseguição e repressão, como a CIA ─ é anterior à sua eleição. Esse compromisso com o imperialismo (de fato, Boric não é apenas um aliado, mas sim um funcionário do imperialismo) simplesmente obstrui qualquer possibilidade de progresso em um governo Boric.
Sua política é manter intacto o regime neoliberal, ao contrário do que pensa Sader. Apenas algumas pequenas reformulações para aliviar a pressão popular contra o saque dos bancos, mas sendo rígido nos gastos públicos e no pagamento integral da dívida externa. Com relação à repressão, a mesma ladainha da esquerda pequeno-burguesa brasileira sobre “desmilitarizar a polícia” havia sido aventada, de acordo com as características chilenas, o que significa não modificar em nada a sua estrutura ─ nem mesmo a sua desmilitarização. Tanto é que Boric colocou em postos-chave de seu governo ─ economia e segurança pública ─ pessoas de confiança da burguesia e do imperialismo, que têm inclusive ligações com a ditadura de Augusto Pinochet.
O articulista do Brasil 247 tem a ilusão ─ vendida pela imprensa burguesa ─ de que a política identitária configuraria algum tipo de medida popular que realmente beneficie o povo. E o discurso identitário de Boric e sua turma se mesclam com um pseudorreformismo barato e genérico, que são alçados a suprassumo do progresso por Emir Sader. O que, de fato, significa ser um “Estado plurinacional, intercultural, regional e ecológico” ou uma “igualdade substantiva dos seres humanos e sua relação indiscutível com a natureza”? Nem Sader, nem Boric, nem os constituintes explicam. Porque são coisas muito vagas. E isso é proposital, pois, através dessa lenga-lenga demagógica, o imperialismo pode impor uma política mais abertamente de submissão do Chile.
O pedido de prisão de Cristina Kirchner pelo MP da Argentina revela que há um novo golpe em curso no país. Onde existem alternativas nacionalistas na América Latina o imperialismo se mantem no poder por meio de golpes de Estado.
Fora o imperialismo da América Latina! pic.twitter.com/mrANpkTwzO— PCO – Partido da Causa Operária – (M) (@mpco29) August 23, 2022
E a questão econômica, que é o fundamental? A propriedade dos grandes capitalistas internacionais segue intocada. Afinal, eles são aliados ─ ou melhor, empregadores ─ de Boric. Sader elogia o movimento que está sendo feito em torno à proposta de nova constituição como uma mobilização cívica que fez com que a possível nova carta magna seja o livro mais lido do país. Mas o caráter e conteúdo dessa política, Sader não diz, não tem nada de verdadeiramente progressista. Apenas demagogia com as mulheres, os índios e os gays e afins. Do que adianta ser um movimento que congrega uma parte da sociedade se ele não representa realmente os interesses da sociedade?
Antes de Boric se eleger, os interesses da maioria da sociedade chilena estavam claros: o confisco das grandes propriedades capitalistas, o fim da polícia, a educação gratuita e para todos. Onde se encontram essas medidas na proposta de nova constituição? Em lugar nenhum. Porque o governo Boric é exatamente isto: um balde de água fria nas reivindicações populares. Em 2019, os chilenos efetuaram uma verdadeira insurreição popular de características revolucionárias, que incendiaram prédios de grandes multinacionais (como a Enel) e invadiram delegacias de polícia. A ideia de “Assembleia Constituinte” surgiu não como uma expressão da vontade popular, mas sim como uma manobra da burguesia e do imperialismo (com o apoio da esquerda) para desviar a indignação do povo para as instituições ─ controladas pela claque pinochetista de Sebastián Piñera.
A esquerda ─ do Partido Comunista ao Partido Socialista e a Gabriel Boric ─ fez campanha para que o povo saísse das ruas e apostasse nas instituições. Seria por meio delas que o povo conseguiria mudar o país. Resultado: o povo estava prestes a derrubar o governo e toda a estrutura herdade do pinochetismo, mas quase foi eleito um fascista abertamente admirador da ditadura militar de 1973 a 1990 (Antonio Kast). A esquerda, mancomunada com o imperialismo, utilizou Kast como espantalho para obrigar os eleitores a votarem em Boric, cujas propostas não tinham nenhuma relação com as verdadeiras reivindicações dos manifestantes. E a “Constituinte” foi um golpe do mesmo nível. Tanto é que existe a possibilidade de ser rejeitada em plebiscito no próximo dia 4, por forte oposição da direita, que teve a oportunidade de se reorganizar após quase ser pulverizada pela mobilização das massas. Foi isto o que fez a campanha em torno de Boric e da “Constituinte”: resgatar as forças mais obscuras e retrógradas do Chile do abismo ao qual estavam sendo jogadas pelo povo.
Emir Sader quer ver nisso algo de progressista. Porque acredita que o Brasil poderá seguir pelo mesmo caminho, caso Lula seja eleito. A tática da frente ampla é a mesma em todo o lugar: colocar as organizações e o movimento popular a reboque da direita, da burguesia e do imperialismo. Foi isso o que vimos no Chile e é isso o que alguns setores da esquerda querem ver no Brasil. E disseminam a ideia de que isso seria uma grande mudança, um grande progresso, uma verdadeira transformação social. Alckmin, Márcio França, FHC, Globo, todos estariam juntos conosco, assim como seus correspondentes chilenos estão com a esquerda chilena. Mas a esquerda chilena traiu o povo e passou para o lado do inimigo. O problema é que no Brasil o povo não vai aceitar calado. Nem por um lado, nem por outro, isso é viável no Brasil. Sequer está sendo viável no Chile.