─ Eduardo Vasco, de Novocherkassk
O motorista do Yandex Go nos deixa ao lado da estação de trem de Novocherkassk, um centro industrial de fabricação de peças e vagões de trem cuja fábrica era a única em todo o país nos tempos soviéticos. O chão está todo enlameado pela chuva que caía no Oblast de Rostov desde que chegamos. Somada à temperatura de cerca de 10°, reduz a sensação térmica a quase zero.
Não era isso o que esperávamos no sul da Rússia quando conversamos com Karina alguns dias antes. Brasileira de Recife, ela vem nos buscar para nos levar a seu apartamento, localizado em um conjunto residencial por volta de 10 minutos a pé da estação.
Até parecia que nos conhecíamos pessoalmente há muito tempo. Nossa amizade é produto do desespero de repórteres brasileiros indo para a Rússia sem conhecer ninguém e sem falar russo. A esposa russa de um simpatizante recente do PCO no Brasil falou em um grupo sobre nossa ida à Rússia e um russo iluminado se dispôs a nos ajudar, inclusive apresentando Karina a mim pelos aplicativos de mensagem. Na realidade, a maioria de nossos contatos foi conquistada dessa maneira.
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Poderíamos tentar comparar o prédio onde mora com as Cohabs e CDHUs brasileiras, mas isso não refletiria muito bem a realidade. É porque o governo russo oferece condições de moradia muito melhores que as nossas. Vários parquinhos, três creches, estacionamentos, muitos mercados e lojas acompanham os prédios de dez andares construídos nos anos 60 pelo regime soviético. Vemos as crianças voltando da escola, sozinhas, felizes e tranquilas.
─ Não preciso me preocupar com a minha filha, diz Ivan, marido de Karina, nascido e criado em Novocherkassk.
A creche fica a cinco minutos de seu prédio e o casal paga entre 2.500 e 3.000 rublos por mês (cerca de 170 reais), dependendo de quantos dias a criança comparece à instituição. É basicamente uma ajuda de custo, conta a mãe. Na creche de Maya, uma menininha alegre e sorridente de três anos de idade, as crianças podem ficar das 7 horas da manhã até às 7 horas da noite e aprendem até mesmo a tocar piano.
Segurança pública, em especial para os filhos, é uma característica que o governo Putin recuperou dos tempos soviéticos. Isso quem é diz Ivan, quando pergunto se ele, com 37 anos, preferia viver na antiga União, ou na atual Federação Russa. Ele cresceu exatamente em um tempo em que décadas de degeneração burocrática já haviam jogado no abismo a Revolução de 1917, enterrada definitivamente em 1991.
─ São períodos muito diferentes. Agora é melhor do que quando eu era criança. Eu nasci em 1984. Ia para a escola sozinho, não havia preocupação sobre segurança. Tudo era bom e tranquilo, as crianças tinham atividades o dia todo, brincavam na rua o dia todo sem os adultos, sem se preocupar com a segurança. A partir dos anos 90, a situação piorou muito rapidamente. Apareceram muitos problemas, muito crime. As pessoas não tinham mais o que comer, não tinham salário, emprego, iniciou-se uma guerra na Chechênia. Havia um risco muito grande de o país ser destroçado. Após Putin chegar ao poder, tudo mudou. A questão da segurança é parecida com a época soviética. Mas o nível de vida é um pouco melhor, há mais produtos no supermercado. Temos emprego e uma situação econômica estabilizada, somos agora muito mais fortes do que nos anos 90.
Ivan e Karina se conheceram no Recife, onde ele era alpinista industrial e ela era funcionária pública. Com essa profissão, na Rússia, em 2015, pouco antes de ir para o Brasil, ele recebia um salário de 84.000 rublos (R$ 4.755 de hoje). Karina, no entanto, sofreu um acidente doméstico que a deixou invalidada e por isso conseguiu uma aposentadoria por invalidez no serviço público. Vieram para a Rússia em agosto de 2021, com a filha no colo. Enquanto não recebe a cidadania russa, Karina não pode trabalhar, então vive do dinheiro da aposentadoria. Ivan acabou de entrar no novo emprego e ganha 48.000 rublos ─ mas, diz ele, dentro de três anos, quando completar 40 primaveras, seu salário irá aumentar para pelo menos 100.000 rublos. Entretanto, as sanções internacionais contra a Rússia ─ que atingem a população, ao contrário do que dizem aqueles que as impõem ─ fizeram com que o dinheiro da aposentadoria de Karina ficasse retido, sem possibilidade de enviá-lo para a Rússia. O bloqueio do sistema SWIFT de transações internacionais por parte dos EUA impede os estrangeiros que vivem na Rússia (como Karina, ou como muitos estudantes que agora passam fortes necessidades) de receber remessas vindas de fora, bem como os impede de enviar dinheiro para seus familiares em seus países de origem. O casal está guardando suas economias para comprar uma casa própria (esta é do irmão de Ivan, que a deixou aos seus cuidados para ir morar em Israel). Pensam em se mudar para Rostov do Don ou Kaliningrado, talvez.
O prédio onde vivem não está em boas condições. Em alguns dos que visitei até o momento na Rússia, percebi que a manutenção não é boa com relação às aparências, principalmente nos corredores, elevadores e paredes. Porém, tudo funciona. O apartamento é uma kitchenette, como muitos no país. Quarto, cozinha e banheiro. Com uma pequena varanda, igual a todos os apartamentos que entrei. Isso é muito curioso. Os russos ao menos têm como tomar um banho de sol ou desfrutar a paisagem. Um conhecido que morou durante cinco anos no país me disse que todas as casas são planejadas para receberem a luz do sol, o que não ocorre no Brasil.
Como outras pessoas com quem conversei, eles dizem que as contas e tarifas são baixas. Em março, pagaram 1.350 (R$ 76,00) rublos de luz. Sua conta de gás é de 87 rublos (R$ 5,00), a de água é 2.472 (R$ 140,00), a taxa de limpeza do prédio é 109 rublos (R$ 6,00), a para cobrir os gastos com infraestrutura, como encanamento, pintura, telhado, é de 276 rublos (R$ 15,00), o pacote de internet com TV por assinatura gira em torno de 700 rublos (R$ 40,00) e os 15 kg que enchem a barriga de Marduk, um gracioso pastor alemão, saem por 2.500 rublos (R$ 141,00). Não têm carro, mas se tivessem gastariam 47 rublos (R$ 2,76) para cada litro de gasolina. A passagem de ônibus em Novocherkassk, bem como em Rostov, é 21 rublos (R$ 1,18). Karina ressalta que o preço do transporte é mais ou menos o mesmo em toda a Rússia (em Taganrog, cidade praiana que fica à 1h a oeste de Rostov, a passagem é 26 rublos), assim como das tarifas e dos produtos. No final do mês, ainda sobra dinheiro para colocar na poupança e para pagar gastos como hospital, diz Ivan.
─ No Brasil, muita gente está passando fome, aponto.
─ Eu sei. Isso é muito triste ─ responde Ivan. Quando morávamos no Brasil, muita gente batia na nossa porta pedindo comida. Aqui na Rússia o nosso governo tem muito mais obrigações para com o povo. Se eu não tenho trabalho, o governo deve me dar trabalho. Se eu não tenho moradia, o governo pode me dar uma moradia. Mesmo que eu tenha que pagar, será barato, e eu não vou morar na rua.
Vi algumas pessoas pedindo esmola nas ruas de Moscou e duas senhoras nas ruas de Rostov. Mas, para quem está acostumado com o Brasil, onde hordas de mendigos infestam as cidades, nesse quesito a Rússia parece quase um país socialista. Contudo, há 20 anos, quando a economia russa era devastada pelo neoliberalismo com a queda da URSS, a situação era muito diferente.
─ Na década de 1990, muita gente passou fome na Rússia. Lembro de ver os meus pais chorarem.
─ Por causa da fome?
─ Sim.
O olhar de preocupação atravessa a janela, como se quisesse fugir das recordações daqueles tempos difíceis.
─ Um dia, meu professor foi para a aula e não conseguia ficar de pé, porque estava com fome (Ivan o imita, debruçando-se na mesa com cara de zumbi). Nós, crianças, nos organizávamos em grupos para buscar frutas nas árvores para comer.
Então pergunto a Ivan qual sua opinião a respeito da operação militar especial na Ucrânia. Ele diz não ser político nem especialista nessas coisas, mas respeita todas as opiniões.
─ A Rússia já deveria ter intervido em 2014. A Rússia tentou negociar mas os ucranianos não aceitaram e bombardearam o Donbass, matando 14 mil pessoas. Nosso governo tentou todas as formas diplomáticas, enquanto a Ucrânia foi se armando. A Ucrânia não quer se proteger, quer atacar. Quando ela fez tudo o que fez no Donbass, a União Europeia e os EUA aceitaram, mas quando é a Rússia eles acusam de ser algo diabólico. Nosso conflito não é contra a Ucrânia, mas contra a Europa e os EUA.
Opina que os EUA estão contra a Rússia e contra a China porque são seus concorrentes, bem como tentam enfraquecer a Europa comprando políticos europeus. Os EUA e a Inglaterra querem controlar as relações da Europa com a Rússia, diz.
─ Os problemas começaram não agora, não em 2014, mas quando a URSS se desmanchou. Porque os EUA e a Europa querem dividir a Rússia, transformar a Rússia em uma colônia como a Ucrânia. Essa situação começou muitos anos atrás. Na Chechênia também havia instrutores americanos, ingleses e ucranianos provocando os separatistas contra a Rússia. Nós queremos paz.
Karina acredita que a Rússia teve seus motivos para realizar a operação militar na Ucrânia e demonstra grande indignação com as distorções e manipulações dos grandes meios de comunicação, que apresentam ao público brasileiro uma realidade paralela sobre o conflito. Ela já divergiu da opinião de amigas que reproduzem o discurso dos grandes jornais e diz que elas ignoram os vários pontos do problema, que precisariam ser levantados e discutidos para formar uma opinião crítica.
─ Se a Rússia esperasse mais, a OTAN poderia instalar mísseis na Ucrânia e assim atacar a Rússia. A Rússia estava quebrando o monopólio dos EUA na venda de gás. E agora se une à China, Índia, Afeganistão etc. E isso ameaça os EUA.
A conversa com Karina é muito interessante, pela qual reflito sobre a amplitude dos efeitos das sanções imperialistas contra a Rússia. Parece, contudo, que o feitiço está se virando contra o feiticeiro.
─ Putin não tem interesse, devido aos laços históricos e culturais, em perder essa simbiose com a história da Ucrânia. Até porque o que ele almeja com essa jogada de tabuleiro é justamente quebrar a velha ordem mundial e iniciar a construção de um mundo multipolar.
Seria esse “mundo multipolar”, na verdade, a destruição do regime imperialista? Ao menos a crise que se abriu com a ação russa é um passo em direção a isso, com certeza. Inflação galopante, falta de gás e carvão e possibilidade de fechamento de fábricas na Europa como resultado das retaliações russas contra os ataques econômicos da União Europeia e dos EUA. Isso pode até mesmo levar à queda de governos europeus, o que de fato não pode ser descartado em médio prazo.