─ Eduardo Vasco, de Novocherkassk
Mais uma vez, estamos atrasados para nosso compromisso. Desta vez, pesou no bolso. Não chegamos a tempo à estação de trem Mikoyan, em Rostov do Don, então tivemos de ir direto de Yandex Go para a cidade de Novocherkassk, que fica a 1h de trem e cerca de 40 minutos de carro de Rostov.
Na estrada, ainda na saída da capital do Oblast de Rostov, vemos dois outdoors brancos com um Z preto enorme e uma frase que não tive tempo de decifrar. Também havia carros com a mesma letra, símbolo da intervenção russa na Ucrânia, em seus parabrisas traseiros. O clima estava horrível: um frio que parecia ainda mais forte devido à chuva que caía, diminuindo a sensação térmica para perto de zero.
Nosso motorista nos deixa ao lado da estação de trem de Novocherkassk, onde minutos depois nos encontramos com uma brasileira que nos receberia em sua casa ─ publicaremos uma reportagem a respeito de sua vida na Rússia logo mais!
Com cerca de 170.000 habitantes, a cidade fica a meras 3h de carro de Lugansk, 3h40 de Mariupol e 4h de Donetsk e a 2h (100 km) de Dovzhansk, também no Donbass. Por esse mesmo motivo, é uma das cidades russas que está com o sinal de alerta ligado para qualquer eventual ataque vindo da Ucrânia. Damos um passeio pelo local e em um dos cruzamentos centrais da cidade vemos dois veículos militares percorrendo a avenida.
Mais para frente, damos de cara com o batalhão do 8° Exército de Armas Combinadas de Guarda. Ele está encarregado da proteção do perímetro relativo à fronteira sudoeste da Rússia com a Ucrânia, exatamente a região do Donbass. Também está preparado para enviar tropas para a região.
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No começo de fevereiro, o exército russo realizou manobras de tanques para praticarem suas habilidades de direção em terrenos de condições difíceis. Os jornais norte-americanos reconhecem que essa base é um centro nevrálgico das forças russas no conflito contra a OTAN na Ucrânia. O prédio foi restabelecido em 2017 e ainda está novinho em folha. Lê-se em sua fachada “Oficiais da guarnição de Novocherkassk” e sobre essas inscrições há uma insígnia de Vladimir Lênin e outra da Guarda Soviética fundada em 1941. Do lado direito, no final da fachada do prédio, um grande cartaz com uma frase de Vladimir Putin que diz “As armas russas modernas são eficazes…”, acompanhada de fotos das forças armadas em ação. Mais ao lado, pelo portão de entrada conseguimos ver mais um veículo militar, quando passa em nossa frente um militar fardado fumando um cigarro e vai para o outro lado.
Ainda durante a caminhada pela Avenida Platovskiy, uma das principais de Novocherkassk, vemos muitos outros militares, que não andam em grupos mas sozinhos, em pares ou em trios. Um deles está dirigindo um ônibus e quando aponto a minha câmera do celular para tirar uma foto, ele faz um sinal de “não” com o dedo indicador. Eu senti o clima tenso na cidade, posto que ela é uma das mais visadas pelo exército ucraniano e pela OTAN e seria uma das primeiras a sofrer um ataque caso os inimigos da Rússia tomassem coragem de iniciar uma verdadeira guerra. Temor semelhante é sentido pelos habitantes de Rostov do Don, cujas conversas relataremos em outra reportagem.
Quase ao lado, na mesma avenida, entramos no Museu da História dos Cossacos do Don, um prédio antigo de dois andares sem nenhum visitante. Os funcionários quase se espantam quando veem chegar os forasteiros, ainda mais quando digo que somos do Brasil.
Os cossacos eram uma população seminômade que depois se assentou, se transformaram em grandes proprietários de terras e se tornaram uma espécie de elite militar na última etapa do czarismo. Por isso, foram fundamentais na repressão às revoluções de 1905 e 1917. No entanto, com esta, um setor passou para o lado revolucionário. A partir do estabelecimento da URSS, profundamente religiosos, eles perderam a relevância que tinham e nunca mais a recuperaram.
Muito bonito, o museu abriga vestimentas, espadas, espingardas, escudos, carruagens, canoas, quadros e esculturas de diversas épocas, inclusive de tempos imemoriais antes da Era Cristã. Na entrada do segundo andar, há duas estantes que guardam materiais da II Guerra Mundial, quando os nazistas capturaram Novocherkassk, com fotos das vítimas e dos heróis da resistência e troféus de guerra conquistados dos alemães, como um quepe e um capacete todo rachado e enferrujado mas onde ainda se vê a água pousada sobre a suástica.
Essa região da Rússia, no Oblast de Rostov e, especialmente, a cidade de Novocherkassk, tem uma longa história guerreira. Agora se vê novamente às voltas com um novo conflito, que está às suas portas.
Voltando para Rostov do Don no final da tarde, nos aborda na estação de trem de Novocherkassk um bêbado que pergunta sobre nós.
─ Somos brasileiros.
─ Brazilets?
Então ele se anima e vem para perto de nós, cambaleante. Mostra o dedo do meio para um trem que passa por perto.
─ Você fuma?
─ Não, obrigado.
Faz um gesto como se estivesse tocando um saxofone e vai para o outro lado da plataforma, cambaleando ainda mais. Volta para o meu lado e pergunta o que estou escrevendo em meu caderno.
─ Poesia. Obviamente não iria revelar que estava anotando justamente o conteúdo deste final de história.
Tem nas mãos tatuagens ao estilo daqueles que se fazem nos presidiários russos: na parte rechonchuda de sua mão esquerda, um E espelhado e dividido por um |, e números em cada um de seus dedos.
O trem chega e nós subimos, com o bêbado nos seguindo. Ele senta ao nosso lado e fica puxando conversa. Um russo bêbado nos enchendo o saco! Para nossa sorte, ele desce na estação seguinte. Aperta nossas mãos, sorri e se vai.
─ Essas coisas são universais, diz Rafael.
Pela janela, aprecio a paisagem formada por vastas plantações de trigo e logo em seguida pelo Rio Don, que batizou Rostov do Don, Donetsk e Donbass com suas águas e seu nome. Chegando à capital, vejo algumas casas velhas, umas delas debaixo de uma ponte. Não são barracos de favelas, mas casebres. No alto de um deles, flameia uma bandeira da Rússia.