Este é o segundo artigo com a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, texto redigido por Karl Marx em 10 de fevereiro de 1844 e publicado no mesmo mês nos Deutsch-Französische Jahrbücher, em Paris. Na primeira parte, foi apresentada a abertura do ensaio, em que Marx retoma o resultado da crítica da religião na Alemanha e propõe deslocar a crítica para a esfera profana — o Estado, o direito e a política —, situando também o contraste entre o desenvolvimento filosófico alemão e o atraso das suas formas políticas.
Nesta continuação, o autor passa do diagnóstico à questão central do texto: a possibilidade de uma transformação efetiva na Alemanha. A partir da pergunta sobre se o país poderia alcançar uma prática “à altura dos princípios”, Marx discute os limites da crítica puramente teórica, insiste que a força material só é superada por força material e formula a relação entre teoria e ação política.
O trecho final desenvolve ainda o problema da emancipação parcial e da emancipação universal, até chegar à identificação do proletariado como a classe cuja condição social poderia concentrar, de forma mais ampla, a necessidade de ruptura com a ordem existente. É também nesse contexto que Marx apresenta a ideia de que a filosofia encontra no proletariado suas “armas materiais”, enquanto o proletariado encontra na filosofia suas “armas espirituais”.
Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel
Karl Marx
Indagamo-nos: pode a Alemanha chegar a uma prática à la hauter des principes [à altura dos princípios], isto é, a uma revolução que a eleve não só ao nível oficial dos povos modernos mas, também, ao nível humano que será o futuro imediato destes povos!
As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã e, portanto, de sua energia prática, consiste em saber partir decididamente da superação positiva da religião. A crítica da religião derruba a idéia do homem cama essência suprema para si próprio. Por conseguinte, com o imperativo categórico mudam todas as relações em que o homem é um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezível, relações que nada poderia ilustrar melhor do que aquela exclamação de um francês ao tomar conhecimento da existência de um projeto de criação do imposto sobre cães: Pobres cães! Querem tratá-los como se fossem pessoas!
Até historicamente a emancipação teórica tem um interesse especificamente prático para a Alemanha. O passado revolucionário da Alemanha é, de fato, um passado histórico: é a Reforma. Como então no cérebro do frade, a revolução começa agora no cérebro do filósofo.
Lutero venceu efetivamente a servidão pela devoção porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou com a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha convertido leigos em sacerdotes. Libertou o homem da religiosidade externa porque erigiu a religiosidade no interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias porque sujeitou de cadeias o coração.
Mas, se o protestantismo não foi a verdadeira solução, representou a verdadeira colocação do problema. Já não se tratava da luta do leigo com o sacerdote que existe fora dele, mas da luta com o sacerdote que existe dentro de si próprio, com sua natureza sacerdotal. E, se a transformação protestante do leigo alemão em sacerdote emancipou os papas leigos, os príncipes, com toda sua clerezia, se emancipou privilegiados e filisteus, a transformação filosófica dos alemães com espírito sacerdotal em homens emancipará o povo. Mas, do mesmo modo que a emancipação não se deteve nos príncipes, tampouco a secularização dos bens se deterá no despojo da igreja, realizada sobretudo pela hipócrita Prússia. A guerra dos camponeses, fato mais radical da história alemã, lançou-se contra a teologia. Hoje, com o fracasso da própria teologia, o fato mais servil da história alemã, nosso status quo, se lançará contra a filosofia. As vésperas da Reforma, a Alemanha oficial era o servo mais submisso de Roma. As vésperas de sua revolução, é o servo submisso de algo menos que Roma, Prússia e Áustria, de fidalguetos rurais e filisteus,
Não obstante, uma dificuldade fundamental parece opor-se a uma revolução alemã radical.
Com efeito, as revoluções necessitam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades. Ora, ao imenso divórcio existente entre os postulados do pensamento alemão e as respostas da realidade alemã corresponderá o mesmo divórcio existente entre a sociedade alemã e o Estado e consigo mesma! Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento.
Todavia, a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da emancipação política. Praticamente, não chegou sequer às fases que superou teoricamente. Como poderia, de um salto mortal, remontar-se não só sobre seus próprios limites, como também e ao mesmo tempo, sobre os limites dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia sentir e aos quais devia aspirar como a emancipação de seus limites reais! Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades radicais, cujas premissas e lugares de origem parecem faltar completamente.
Não obstante, se a Alemanha só abstratamente acompanhou o desenvolvimento dos povos modernos, sem chegar a participar ativamente das lutas reais deste, não é menos verdade que, de outro lado, partilhou os sofrimentos deste mesmo desenvolvimento, sem usufruir seus benefícios e satisfações parciais. A atividade abstrata de um lado, corresponde o sofrimento abstrato do outro. Assim, numa bela manhã, a Alemanha se encontrará em nível idêntico à decadência européia antes mesmo de haver atingido o nível da emancipação européia. Poderíamos compará-la a um idólatra que agonizasse, vítima do cristianismo.
Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemães, e os veremos de tal modo impulsionados pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pelo ponto de vista da cultura alemã e, finalmente, por seu próprio instinto certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que nos podemos jactar até a saciedade, que a Alemanha, senão por prudência, pelo menos à falta desta tem que participar cada vez mais da constituição de Estados que estão muito além de seu status quo. Acaso, por exemplo, há no mundo algum país que partilhe tão simplesmente como a chamada Alemanha constitucional todas as ilusões do Estado constitucional sem partilhar de suas realidades. Ou não teria que ser necessariamente uma ocorrência do governo alemão o fato de associar os tormentos da censura aos tormentos das leis de setembro na França, que pressupõem a liberdade de imprensa. Assim como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro império romano germânico se reúnem os pecados de todas as formas de estado. Que este ecletismo chegará a alcançar um nível até hoje inimaginado, o garante, de fato, o enfado estético-político de um monarca alemão que aspira desempenhar, se não através da pessoa do povo, pelo menos em sua própria, se não para o povo, pelo menos para si mesmo, todos os papéis da monarquia: a feudal e a burocrática, a absoluta e a constitucional, a autocrática e a democrática. A Alemanha, como a ausência do presente político constituído num mundo próprio, não poderá derrubar as barreiras especificamente alemães sem derrubar a barreira geral do presente político.
Para a Alemanha, o sonho utópico não é a revolução radical, não é a emancipação humana geral, mas, ao contrário, a revolução parcial, a revolução meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma revolução meramente política? No fato de emancipar uma parte da sociedade burguesa e de instaurar sua dominação geral, no fato de uma determinada classe empreender a emancipação geral da sociedade a partir de sua situação especial. Esta classe emancipa toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los.
Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e na massa, momento durante o qual confraterniza e se funde com a sociedade em geral, com ela se confunde e é sentida e reconhecida como seu representante geral, que suas pretensões e direitos são, na verdade, os direitos e ai pretensões da própria sociedade, que esta classe é realmente o cérebro e o coração da sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominação geral. E, para atingir esta posição emancipadora e poder, portanto, explorar politicamente todas as esferas da sociedade em benefício da própria esfera, não bastam por si sós a energia revolucionária e o amor próprio espiritual. Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os defeitos da sociedade se condensem numa classe, que uma determinada classe resuma em si a repulsa geral, que seja a incorporação do obstáculo geral; é necessário, para isto, que uma determinada esfera social seja considerada como crime notório de toda a sociedade, de tal modo que a emancipação desta esfera surja como autoemancipação geral. Para que um estado seja par excellenee o estado de libertação, é necessário que outro seja o estado de sujeição por antonomásia. O significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou a significação positiva geral da classe inicialmente delimitadora e contraposta, da burguesia.
Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem de conseqüência, rigor, arrojo e intransigência capazes de convertê-las no representante negativo da sociedade. Além do mais, todas carecem da grandeza de espírito que pudesse identificar uma delas, ainda que momentaneamente, com o espírito do povo; todas carecem da genialidade que infunde o entusiasmo do poder político ao poder material, da intrepidez revolucionária que lança o desafio ao inimigo: Nada SOU e tudo deveria ser. Esse modesto egoísmo que faz valer e permite que outros também façam valer suas próprias limitações é o fundo básico da moral e da honradez de indivíduos e classes na Alemanha. Por isto, a relação existente entre as diversas esferas da sociedade alemã não é dramática, mas épica. Cada uma delas começa a sentir e a fazer chegar às outras suas pretensões, não ao se ver oprimida, mas quando as circunstâncias do momento, sem intervenção sua, criam uma base social sobre a qual, por sua vez, possa exercer pressão. Até mesmo o amor próprio moral da classe média alemã repousa sobre a consciência de ser o representante geral da mediocridade filistéia de todas as demais classes. Portanto, não são apenas os reis alemães que ascendem ao trono mal à propos [Inoportunamente], mas todas as esferas da sociedade burguesa, que sofrem sua derrota antes de terem festejado a vitória, que desenvolvem seus próprios limites antes de terem ultrapassado os limites que se opõem a estes, que fazem valer sua pusilanimidade antes de fazer valer sua arrogância, de tal modo que até mesmo a oportunidade de desempenhar um grande papel desaparece antes de existir e que cada classe, tão logo começa a lutar com aquela que lhe está acima, vê-se envolvida na luta com aquela que lhe está abaixo. Daí porque os príncipes estão em luta contra a burguesia, os burocratas contra a nobreza e os burgueses contra todos eles, enquanto o proletário começa a lutar contra o burguês. A classe média nem sequer se atreve a conceber o pensamento da emancipação de seu ponto de vista, já que o desenvolvimento das condições sociais, do mesmo modo que o progresso da teoria política, se encarregam de revelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado ou, pelo menos, problemático.
Na França, basta que alguém seja alguma coisa para querer ser todas as coisas. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não quiser renunciar a tudo. Na França, a emancipação parcial é o fundamento da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a conditio sine que non de toda emancipação parcial. Enquanto na França é a realidade da emancipação gradual que tem de engendrar a liberdade total, na Alemanha, ao contrário, é justamente a sua impossibilidade. Na França, toda classe é um político idealista que se sente como representante das necessidades sociais em geral, ao invés de sentir-se como representante de uma classe especial. Por isto, o papel emancipador passa por turnos, em movimento dramático, entre as distintas classes do povo francês até atingir, finalmente, a classe que já não realiza a liberdade social sob a hipótese de certas condições que se encontram à margem do homem e que, não obstante, foram criadas pela sociedade humana, mas que organiza todas as condições de existência a partir da hipótese da liberdade social. Pelo contrário, na Alemanha, onde a vida prática tão pouco tem de espiritual assim como a vida espiritual de prático, nenhuma classe da sociedade burguesa sente a necessidade nem a capacidade de emancipação geral até ver-se obrigada a isto por sua situação imediata, pela necessidade material, pelas suas próprias cadeias.
Onde reside, pois, a possibilidade positiva da emancipação alemã?
Resposta: na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado.
O proletariado só começa a surgir na Alemanha, mediante o movimento industrial que desponta, pois o que forma o proletariado não é a pobreza que nasce naturalmente, mas a pobreza que se produz artificialmente; não é a massa humana oprimida mecanicamente pelo peso da sociedade, mas aquela que brota da aguda dissolução desta e, em especial, da dissolução da classe média, ainda que gradualmente, como se compreende, venham a incorporar-se também a suas fileiras a pobreza natural e os servos cristãos-germânicos da gleba.
Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua parte, como resultado negativo da sociedade. O proletariado está amparado, então, em relação ao mundo que nasce, da mesma razão que assiste o rei alemão em relação ao mundo existente, ao denominar o povo seu povo, como ao cavalo seu cavalo. Ao declarar o povo sua propriedade privada, o rei se limita a expressar que o proprietário privado é o rei.
Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com a mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular, se efetuará a emancipação dos alemães como homens.
Resumindo e concluindo:
A única emancipação praticamente possível da Alemanha é a emancipação do ponto de vista da teoria, que declara o homem essência suprema do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade Média só é possível como emancipação paralela das superações parciais da Idade Média. Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum tipo de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral. A meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar seu próprio fundamento. A emancipação do alemão é a e emancipação do homem. O cérebro desta emancipação é a filosofia; seu coração, o proletariado. A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia.
Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressurreição da Alemanha.





