A poucos dias do Natal, trabalhando em pleno domingo (21), o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), emitiu uma decisão liminar que derrubou mais um artigo votado pela Câmara dos Deputados. Neste caso, trata-se de um artigo do Projeto de Lei Complementar nº 218/2025, que, por sua vez, anulava um trecho da Lei Complementar nº 215/2025.
A crise se dá em torno da revalidação de emendas parlamentares, que são recursos da União cujo destino é decidido por deputados e senadores. As emendas em questão são aquelas que foram tecnicamente extintas — isto é, foram aprovadas, mas não foram gastas, seja porque a obra em questão nem começou ou seja porque o serviço não foi entregue até o fim do prazo determinado. Normalmente, quando esse dinheiro não é gasto, o recurso é cancelado, e a obra deixa de acontecer.
É comum, no entanto, que o próprio Congresso altere os prazos para a utilização de emendas. Foi o que fez em lei sancionada pelo presidente Lula em março de 2025, a Lei Complementar nº 215. Esta lei dizia que:
“Os restos a pagar não processados inscritos nos exercícios financeiros de 2019 a 2022, de que trata o art. 172 da Lei nº 14.791, de 29 de dezembro de 2023 (Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024), vigentes em dezembro de 2024 e cancelados serão revalidados e poderão ser liquidados até o final do exercício de 2026.”
A lei, no entanto, estabelecia, em seu parágrafo 1º, que a prorrogação do prazo para liquidação somente poderia ser aplicada a restos a pagar não processados referentes às despesas cujo procedimento licitatório tenha sido iniciado ou relativas a convênios ou a instrumentos congêneres em fase de resolução de cláusula suspensiva. Isto é, nem toda emenda teria um prazo especial para ser utilizada.
A decisão do Congresso de prorrogar o prazo para utilizar os recursos da União é absolutamente legítima, uma vez que a Constituição Federal estabelece claramente que é o parlamento quem controla o orçamento da União. No entanto, é comum que os parlamentares, para evitar uma crise política, procurem negociar junto ao Executivo a votação das diretrizes orçamentárias.
Foi o que aconteceu no último período, de acordo com o jornal Folha de S.Paulo. Conforme apresentado pelo veículo, o Congresso aprovou um aumento na taxação sobre casas de apostas para que o governo apoiasse o Projeto de Lei Complementar nº 218/2025, que, entre outras questões, remove o parágrafo 1º da Lei Complementar nº 215.
Na prática, a lei funcionou como um mecanismo de sobrevida para investimentos que ficaram represados na burocracia estatal durante anos, impedindo que obras e serviços planejados em gestões anteriores fossem definitivamente abandonados por falta de amparo orçamentário. As obras são, tradicionalmente, uma das principais formas pelas quais os parlamentares garantem sua reeleição e a eleição de seus aliados.
Ainda que o Congresso tenha, de acordo com a própria Constituição, autonomia para determinar a forma como serão gastos os recursos da União, e ainda que os parlamentares, mesmo sem serem obrigados a isso, tivessem procurado um acordo junto ao Executivo, o ministro Flávio Dino decidiu interditar a medida. O STF, assim, sem nunca ter sido eleito para isso, apareceu, uma vez mais, como tutor do Congresso Nacional — e, por extensão, do eleitorado brasileiro.
Por ser composto por representantes eleitos diretamente, o Legislativo tem o direito soberano de definir as prioridades orçamentárias sem ser freado por amarras puramente burocráticas ou técnicas. Afinal, a existência de um corpo burocrático para analisar se as decisões do Congresso são “boas” ou “ruins” revela uma tutela sobre um regime político onde, segundo a própria Constituição, todo o poder deveria emanar do povo. A vigilância constante de órgãos técnicos e do Poder Judiciário, por meio de instituições como o Tribunal de Contas da União (TCU) e o STF, que limitam as decisões legislativas sob os argumentos da responsabilidade fiscal e da continuidade administrativa, é uma ingerência direta dos banqueiros sobre o regime brasileiro.
A decisão de Dino se acumula a outras decisões recentes do STF que tratam o Congresso como um mero conselho consultivo, e não o órgão máximo legislativo do País. Entre elas, a decisão liminar de Gilmar Mendes restringindo quem poderia pedir o impeachment de um ministro da Corte e a anulação, por parte de Alexandre de Moraes, da sessão que decidiu pela manutenção do mandato de Carla Zambelli (PL-SP).
O novo golpe de Dino ataca não apenas o Congresso, mas o próprio Executivo, que esteve de acordo com a decisão. Afinal, para que presidente, deputados e senadores, para que partido político, se o Brasil já tem um ministro do STF?




