O “protocolo antipiquetes” da gestão Javier Milei, aplicado pela então ministra de Segurança Patricia Bullrich (chamada de moderada pela direita tradicional e esquerda pequeno-burguesa) e agora reivindicado por Alejandra Monteoliva, sofreu um questionamento jurídico que expõe aquilo que o movimento popular já vinha denunciando nas ruas: trata-se de uma norma ilegal, arbitrária e feita sob medida para reprimir e criminalizar a luta social na Argentina. Em parecer no âmbito da ação coletiva iniciada pelo CELS e diversos organismos de direitos humanos, o fiscal Fabián Canda afirmou que a resolução 943/2023, que institui o protocolo para carece de fundamentação, motivação e respaldo no regime legal vigente, requisitos mínimos para que qualquer conduta estatal seja legítima.
Segundo o fiscal, o Ministério da Segurança tem competência para editar normas administrativas, mas é obrigado a justificar de forma detalhada por que restringe direitos fundamentais como reunião pacífica, protesto social, liberdade de expressão e integridade física, protegidos tanto pela Constituição quanto por tratados de direitos humanos com hierarquia constitucional. No entanto, a pasta limitou-se a invocar fórmulas genéricas sobre “ordem pública”, sem demonstrar por que seria necessário, proporcional ou adequado tratar toda manifestação que ocupe parcialmente uma via como “delito flagrante”, abrindo espaço para detenções sem ordem judicial e para uso ampliado da força policial.
O parecer surge após quase dois anos de vigência do protocolo, período em que o regime Milei utilizou o dispositivo para impor um regime de terror nas ruas: segundo levantamento da Comissão Provincial por la Memoria, 244 pessoas foram presas em protestos e ao menos 2.557 ficaram feridas, com forte incidência contra jornalistas, defensores de direitos humanos, aposentados e até crianças e adolescentes. Casos como a marcha de 12 de junho de 2024, com 33 detidos em presídios federais e gravíssimas agressões a manifestantes como o fotógrafo Pablo Grillo, o torcedor Jonathan Navarro e a aposentada Beatriz Blanco, revelam o caráter totalmente ditatorial e exemplar da política repressiva: não se trata de “organizar o trânsito”, mas de desmantelar qualquer resistência à política ultra-neoliberal do cãozinho do imperialismo.
Para o CELS e as organizações que subscrevem a ação, o protocolo burla a própria divisão de poderes ao modificar, na prática, o alcance do artigo 194 do Código Penal (interrupção de vias) e criar novas faculdades de repressão, vigilância e detenção sem passar pelo Congresso. Ao transformar a simples participação em um ato de rua em “delito em flagrância”, e ao estender a ameaça penal a quem organiza, convoca ou apenas transporta pessoas a uma manifestação, o Executivo usurpa funções legislativas e instala uma espécie de Estado de exceção permanente contra o movimento popular. Não por acaso, análises jurídicas independentes já qualificam a resolução 943/23 como nula e inconstitucional, justamente por tentar regular um direito democrático central, o direito de protesto e de reunião, por meio de um mero ato administrativo do Executivo.
Canda ainda criticou o uso distorcido da noção de flagrância: o protocolo autoriza a polícia a deter manifestantes sem ordem judicial apenas porque estariam “reduzindo o espaço de circulação”, ignorando que a jurisprudência e os padrões de direitos humanos proíbem aplicar esse conceito quando se trata do exercício de direitos políticos e sociais.
Ao desmontar juridicamente a base do protocolo, o parecer de Canda confirma o que os piquetes, assembleias e organizações de direitos humanos já denunciavam na prática: o Estado argentino, sob Milei, está fora da lei quando reprime o povo. Diante disso, a tarefa central do movimento popular é transformar essa vitória parcial no terreno jurídico em combustível para ampliar a mobilização nas ruas, derrubar o protocolo antipiquetes e barrar a escalada repressiva que ameaça toda a classe trabalhadora do continente.




