A Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) está em campanha contra o texto final do Projeto de Lei 5.582/2025. Elaborado inicialmente pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Enrique Ricardo Lewandowski, e pelo Advogado-Geral da União (AGU), Jorge Messias, o projeto sofreu várias alterações após passar pela relatoria de Guilherme Derrite (Progressistas-SP) na Câmara dos Deputados.
Em sua origem, o projeto, apelidado de “PL Antifacção” por seus autores, propunha uma ampliação dos poderes da Polícia Federal (PF), estabelecendo, inclusive, dispositivos inconstitucionais, sob o pretexto de combater facções do crime organizado. Entre estes dispositivos, estão a autorização para a infiltração policial em organizações supostamente criminosas e o monitoramento da comunicação entre advogado e cliente no sistema prisional.
As alterações impostas ao PL 5.582/2025 preservam a essência do projeto: fortalecer o aparato policial do Estado. A diferença fundamental está no fato de que Derrite acrescentou novos dispositivos que atentam de maneira direta contra o direito de manifestação e o direito de greve, transformando o projeto, que já era profundamente reacionário e inconstitucional, em um verdadeiro PL da Ditadura. Entre as novas medidas, estão a de tornar crime os atos de “utilizar violência ou grave ameaça para intimidar, coagir ou constranger a população ou agentes públicos, com o propósito de impor ou exercer o controle, domínio ou influência, total ou parcial, sobre áreas geográficas, comunidades ou territórios” e de “restringir, limitar, obstaculizar ou dificultar, ainda que de modo temporário, a livre circulação de pessoas, bens e serviços, públicos ou privados, sem motivação legítima reconhecida pelo ordenamento jurídico”.
O acréscimo de dispositivos de caráter fascista não comoveu a ADPF. O protesto da associação de delegados reside apenas em aspectos secundários do texto final.
Em nota pública divulgada no dia 19 de novembro, a ADPF admite estar “preocupada e atenta com a aprovação do relatório do Projeto de Lei Antifacção”. A associação de delegados distingue a redação final dos textos anteriores, afirmando que a quarta relatoria de Derrite “continha avanços para o aprimoramento da legislação”. Esta relatoria, no entanto, acabou sendo revisada.
No mesmo trecho, a ADPF reconhece que a relatoria anterior incorporou “inclusive contribuições apresentadas pela ADPF”, admitindo a atividade de lobby realizada pela categoria.
A crítica da ADPF à relatoria final de Derrite se concentra em dois pontos.
O primeiro deles é o protesto contra a retirada do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol) como destinatário dos recursos provenientes do confisco de bens. Criado em 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o Funapol é uma das maiores fontes de receita da Polícia Federal.
A PF é sustentada por três fontes: o Orçamento-Geral da União (OGU), o Fundo Nacional Antidrogas (Funad) e o Funapol. Excluindo-se a despesa com pessoal (isto é, a folha de pagamento dos policiais), o valor destinado pelo Funapol para a PF é cerca de 29% do valor destinado pelo próprio OGU.
De acordo com nosso levantamento junto ao Portal da Transparência do Governo Federal (Painel de Execução Orçamentária por Função – Segurança Pública), o OGU destinou R$8,31 bilhões para gastos com a Polícia Federal em 2023. O mesmo painel também apresenta que, em 2023, foram gastos R$6,39 bilhões com o pagamento da folha salarial. Naquele ano, portanto, apenas R$1,92 bilhão foi gasto com outras questões para além da folha salarial.
Enquanto isso, de acordo com nossa consulta junto à Lei Orçamentária Anual de 2023, a dotação orçamentária daquele ano pelo Funapol (isto é, o valor previsto a ser gasto) era de R$556 milhões.
A maior parte da arrecadação do Funapol ocorre por meio da cobrança de taxas de expedição de passaportes. O fundo também é alimentado, de forma bastante minoritária, por outros serviços como taxa de inscrição em concursos públicos para ingresso na carreira de policial federal, convênios e aplicações financeiras sobre o próprio fundo.
Até o momento, o Funapol não recebe receitas provenientes do confisco de bens. Essa proposta apareceu no quarto relatório de Derrite, publicado em 12 de novembro, que estabelecia que todo valor oriundo de confisco realizado durante investigações de crime organizado feitas pela PF seria destinado ao Funapol. Em investigações conjuntas com forças locais, os valores seriam rateados em partes iguais.
De acordo com reportagem do UOL/Folha de S.Paulo, caso este dispositivo tivesse sido aprovado, o Funapol receberia R$800 milhões a mais por ano, o que aumentaria sua receita em 143%.
A proposta inicial, feita pelo governo Lula, previa que o valor oriundo dos confiscos fosse remetido ao Funad. Este fundo, diferentemente do Funapol, não é diretamente atrelado à Polícia Federal, mas sim à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ainda que parte do dinheiro seja destinado à Funapol, quem administra os recursos do Funad é, em última instância, a União.
Contrariando os delegados e o governo Lula, a proposta final de Derrite estabelece que o valor dos confiscos será destinado a um terceiro fundo — o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Embora este também seja administrado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, parte de seus recursos devem ser obrigatoriamente destinado aos Estados e Municípios.
O segundo ponto criticado pela ADPF é a criação da Ação Civil de Perdimento de Bens, um dos dispositivos mais autoritários do PL da Ditadura. De acordo este dispositivo, um juiz poder decretar o perdimento (confisco definitivo) de bens de origem supostamente ilícita já na fase de inquérito, antes mesmo de ocorrer a denúncia ou uma condenação penal. Isto é, se, durante uma investigação, a Polícia Federal convencer um juiz de que o apartamento de uma determinada pessoa tenha sido comprado com dinheiro obtido por meio de uma atividade supostamente legal, esta pessoa poderá perder o apartamento definitivamente, sem nem mesmo ter tido o direito de apresentar a sua defesa.
A ADPF não critica o caráter autoritário do dispositivo, mas somente o fato de que os recursos provenientes de tais confiscos serão destinados ao caixa único dos entes federativos (União, Estado, Distrito Federal e Municípios), e não ao Funapol. Para a associação de delegados, o Estado pode roubar a propriedade de seus cidadãos, desde que o dinheiro fique com a PF, e não com os governadores.
A preocupação dos delegados com a arrecadação da PF, por sua vez, vai além de uma suposta defesa da instituição. Uma reportagem veiculada no portal UOL/Folha de S.Paulo em 20 de novembro expõe como o PL da Ditadura atrapalharia os policiais federais de um ponto de vista pessoal.
Ao contrário do que possa parecer, o Funapol não contribui em absolutamente nada para fortalecer as operações da Polícia Federal. O seu objetivo é fornecer regalias aos seus agentes.
Segundo a mesma reportagem do UOL/Folha de S.Paulo supracitada, o Funapol “custeia até 50% do plano de saúde dos servidores da corporação. Além disso, banca também o transporte, hospedagem e alimentação de servidores em missão ou em operação”. Os recursos do Funapol, portanto, não costumam ser utilizados para a compra de armas ou para a construção de infraestrutura. Trata-se de um recurso que acaba indo parar na conta dos próprios policiais, sendo intermediado apenas pela burocracia da própria PF.
A reportagem do UOL/Folha de S.Paulo traz ainda uma entrevista com Luciano Leiro, presidente da ADPF, que diz:
“Funapol é usado para diárias. Quando você não tem o dinheiro de diárias [hospedagem], o policial não vai. Se você não tem dinheiro para pagar diária, você não terá dinheiro para fazer operação.”
A declaração expõe, em primeiro lugar, o espírito profundamente burocrático que vigora entre os agentes da Polícia Federal. Segundo as palavras do presidente da associação de delegados, os agentes da PF, cujo salário mais baixo hoje é de R$14 mil, embora sejam apresentados pela grande imprensa como os “heróis” do combate ao crime, cruzariam os braços se não recebessem diárias.
Ainda que seja direito de qualquer servidor receber diárias quando necessita viajar por questões de trabalho, algumas coisas chamam a atenção no caso da PF.
A Polícia Federal mantém sob sigilo informações essenciais, de acordo com o Governo Federal:
- Nome e qualificação dos servidores
- Quantitativo, distribuição e localização de servidores
- Diárias e passagens de servidores
- Suprimentos de fundo sigilosos
- Técnicas de investigação e atuação operacional
Em 2024, as viagens sob sigilo da PF somaram R$235 milhões, sendo R$189 milhões com diárias, de acordo com artigo publicado no jornal Gazeta do Povo. Esse montante representa recursos públicos sem identificação de beneficiários, destino ou justificativas específicas.
O Decreto 5.992/2006, alterado pelo Decreto 11.872/2023, estabelece os seguintes valores de diárias nacionais para cargos como delegados da PF:
- Deslocamentos para Brasília/Manaus/Rio/SP: R$ 900,00/dia
- Outras capitais: R$ 800,00/dia
- Demais deslocamentos: R$ 750,00/dia
Para cargos intermediários (agentes, escrivães):
- Deslocamentos variam entre R$335,00 e R$425,00/dia
A Polícia Federal tem cerca de 15 mil funcionários. Isso implica que, em 2024, se absolutamente todos os funcionários tivessem viajado, cada um deles teria recebido R$14,5 mil. Isto é, viajado por 29 dias no ano.
A PF, dado seu alto nível de privilégio, é uma poderosa burocracia, assim como as Forças Armadas e o Judiciário. Toda burocracia, por sua vez, tem como característica a defesa de seus próprios interesses, de modo que seu funcionamento, com o passar do tempo, visa mais satisfazer a manutenção dos privilégios de seus integrantes do que cumprir com a função social para a qual foi designada.
No Brasil, há vários casos conhecidos e documentados em que a burocracia estatal utilizou o pagamento de diárias para fazer prevalecer seus interesses corporativos. Em 2009, por exemplo, o portal Congresso em Foco produziu uma série de reportagens do escândalo que ficou conhecido como a “farra das passagens aéreas”, quando deputados utilizaram suas cotas de passagens aéreas, destinadas a viagens de trabalho entre Brasília e seus estados de origem, para custear viagens particulares de amigos, parentes e assessores. A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) na época apontou um uso irregular de R$25.545.727,46 (em valores de 2009) por 219 deputados.
Independentemente do motivo que leve a ADPF a protestar em defesa do aumento de repasses para o Funapol, fica claro que os objetivos dos agentes, ao debater o crime organizado, não dizem respeito às necessidades da população.





