José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

O gargalo do desenvolvimento econômico

O uso de tecnologia tem sido estratégico para os países garantirem a oferta de alimentos à população

O desenvolvimento econômico está longe de ser uma consequência natural de uma política econômica “correta”. Os países que conseguiram se desenvolver o fizeram por terem encarado a luta pela soberania nacional e pelo desenvolvimento. Além, é claro, de aproveitarem, de forma estratégica, as “janelas” de oportunidades que se apresentam a cada conjuntura mundial específica. Aliás, os países desenvolvidos são a exceção e não a regra no contexto internacional: dos 193 países-membros da ONU, apenas 36, basicamente na América do Norte, Europa e Ásia, estão classificados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como países desenvolvidos (menos de 20%).

No contexto global atual, que apresenta vários focos de guerras, praticamente todos provocados pelo imperialismo, o Brasil se encontra em uma posição estratégica, com importantes reservas de petróleo e uma das maiores produções de biocombustíveis, o que o posiciona como um importante ator no mercado energético global. Além disso, o país se destaca pela posição de maior exportador de alimentos do mundo, com uma extensa área de terra disponível para a agricultura, algo que poucos países têm no mundo. Essa posição privilegiada permite ao Brasil atender à crescente demanda global por alimentos, consolidando sua posição como um dos principais fornecedores internacionais.

Todavia, como mostra a história, nenhum país consegue proporcionar uma vida melhor para o seu povo sem desenvolver o setor industrial e o setor de serviços mais elaborados (e que vêm colados à indústria). Ao longo das últimas décadas, a produtividade na agricultura cresceu mais do que em muitos setores da indústria. Um agricultor pode produzir hoje o que 10 ou 12 produziam há 70 ou 80 anos. O paradoxo é que a agricultura mais eficiente do mundo é incapaz de sobreviver sem subsídios e proteção. Cada vaca na Europa é financiada com um montante 4 ou 5 vezes superior à renda per capita de muitos países da África [1].

No entanto, apesar do aumento impressionante de produtividade no setor agrícola, o número de pobres e famintos no mundo não diminuiu significativamente. Pelo contrário, no período recente esse número se elevou, em função do estrago feito pela globalização. O fato é que nenhum país do mundo pode elevar significativamente a renda per capita se não dispuser de um setor industrial e um setor de serviços mais complexos. Os países subdesenvolvidos nunca se desenvolverão exportando alimentos e matérias-primas para os países ricos.

As atividades exportadoras positivas são aquelas ligadas à indústria manufatureira. As atividades exportadoras ruins decorrem de um tipo de produção que acontece quando a agricultura e a indústria extrativa são deixadas ao sabor da lógica do mercado. As atividades exportadoras positivas têm características como: rendimentos crescentes, preços mais estáveis, melhoram a vida dos trabalhadores, têm salários inflexíveis, as mudanças técnicas levam a maiores salários e geram grandes sinergias entre os segmentos da economia.

As atividades exportadoras ruins, ao contrário, apresentam rendimentos decrescentes, preços flutuantes, trabalho geralmente não qualificado, criam estruturas de classes “feudais”, têm salários flexíveis (geralmente para baixo) e criam poucas sinergias entre os setores da economia.

Logo após a Segunda Guerra, os EUA montaram um plano para desindustrializar a Alemanha, que foi o país que teria provocado a Segunda Guerra Mundial. Para punir a Alemanha, que supostamente havia provocado a conflagração, os países imperialistas que saíram vencedores da guerra definiram que ela iria se tornar um Estado agrário. De 1946 a 1947, foi colocado em prática o plano Morgenthau (Henry Morgenthau Jr., secretário do tesouro dos EUA entre 1934 e 1945), autor do plano. A partir de maio de 1945 (quando a Alemanha se rendeu), os equipamentos industriais foram retirados do país ou destruídos e as minas de extração mineral foram submersas em água e concreto.

Em 1947, apenas dois anos depois, os EUA já tinham percebido que a desindustrialização havia provocado um rápido declínio da produtividade agrícola. Os conhecidos mecanismos de sinergia entre indústria e agricultura funcionaram, nesse caso, pela via contrária: na medida em que se destruía a indústria, caía também a produtividade da agricultura. Esse é um dado muito interessante. Segundo declarações do próprio Morgenthau, a tentativa de transformar a Alemanha em um Estado agrário poderia exterminar 25 milhões de alemães (mais da metade da população à época).

A produção de matérias-primas e de bens manufaturados obedece a diferentes lógicas econômicas, razão pela qual os países que produzem matérias-primas também necessitam de um setor industrial desenvolvido. Também por essa razão o neoliberalismo e a globalização foram tão destrutivos, especialmente para os países subdesenvolvidos e muito especialmente para os pequenos e pobres.

É fácil verificar a sinergia entre agricultura e a indústria através de um dado muito direto. Os 5 maiores produtores agrícolas do mundo (pela ordem: China, EUA, Brasil, Índia e Rússia), além de produzirem muitos alimentos, têm também em comum a utilização cada vez maior de tecnologias, visando aumentar a produtividade agrícola. Com a tecnologia, esses países ampliam a produção de alimentos sem precisar expandir, na mesma proporção, a área cultivada.

Na China, que encabeça o ranking, a agricultura já é, em boa parte, digital. A produtividade avançou muito com a modernização da cadeia de distribuição e da cadeia agroindustrial. A mecanização do setor agrícola no país já superou os 80%. Uma nova geração de máquinas vem sendo desenvolvida e testada: as máquinas autônomas, que não têm condutor, recebem suas coordenadas via GPS. Os drones também têm destaque na agricultura chinesa: com sistemas de Inteligência Artificial e sensoriamento remoto, aplicam defensivos de forma precisa e mais barata.

Nos EUA, o setor agrícola, apesar de ter o segundo volume de produção do mundo, emprega em torno de um milhão de pessoas. O que é ínfimo, já que a força de trabalho norte-americana deve estar em torno de 160 milhões de trabalhadores (para uma população de 332 milhões). Atualmente, cerca de 95% dos agricultores norte-americanos usam alguma tecnologia de agricultura de precisão e mais de 30% investem significativamente nessa área. A agricultura brasileira, que é a terceira do mundo, não fica devendo muito nessa área, usando também muita tecnologia. A produção nacional gera alimentos para cerca de 10% da população do mundo, tendo a sua participação no mercado mundial saltado para mais de US$ 100 bilhões na última década. Entre os maiores produtores, o potencial de expansão da área plantada do Brasil é um caso único.

O uso de tecnologia tem sido estratégico para os países garantirem a oferta de alimentos à população. Por isso, a existência de um setor industrial forte é o que caracteriza os países que possuem agricultura forte. Do ponto de vista técnico, quanto menor o peso da agricultura como percentual do PIB, menores são as probabilidades de crises de fome.

A China, da década de 1970 para cá, retirou mais de 800 milhões de pessoas da fome com uma série de medidas. Uma delas foi justamente se converter na “fábrica do mundo”. Converter-se em “fábrica do mundo” possibilitou à China que se tornasse também um grande “celeiro”. Não do mundo, mas pelo menos para atender sua população, que corresponde a mais de 18% da população da terra.

A UNIDO (Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial – United Nations Industrial Development Organization), agência especializada do sistema da ONU, divulgou recentemente o panorama da indústria mundial, atualizando sua base de dados sobre o valor adicionado no setor até o ano de 2023. Com base nesse estudo da UNIDO, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) elaborou o ranking dos maiores parques manufatureiros do mundo. O ranking em valor adicionado, em 2023, era: China, em 1º lugar, com 31,8% da manufatura mundial; EUA, em 2º, com 15,1%; e Japão, em 3º lugar, com 6,6% do total.

O referido ranking traz informações que ajudam a entender por que a China foi levada à condição de inimigo mortal do Império há alguns anos. Há vinte anos, em 2005, nesse ranking a potência asiática aparecia com 13,2%, em 2º lugar, e os EUA, 1º no ranking, participavam com 22,6% no total. Já em 2023, a participação da China em valor adicionado era maior que a soma das 4 potências industriais seguintes (EUA, Japão, Alemanha e Índia), que juntos responderam por 29,5% do valor adicionado da indústria no mundo.

O diagnóstico preexistente, no projeto nacional de desenvolvimento estabelecido pela China há algumas décadas, compreendeu que o desenvolvimento do centro está ligado ao subdesenvolvimento da periferia capitalista. Percebeu que a economia mundial é estruturalmente assimétrica, com os países centrais fabricando produtos de alta complexidade e a periferia gerando commodities e manufaturas de menor conteúdo tecnológico. A estratégia chinesa vem combatendo essas e outras maldições do subdesenvolvimento. Ao centrar sua economia em exportações industriais, conseguiu escapar do gargalo externo do balanço de pagamentos, na medida em que conseguiu acumular grandes reservas em moeda forte. Fugiu, assim, do risco de um crescimento cíclico, dependente de capital externo e com baixa capacidade de transformação estrutural. Em termos de Paridade de Poder de Compra (PPC), cálculo que compara moedas e PIBs levando em conta o custo de vida de cada país, a economia da China já é cerca de 20% a 25% maior do que a dos Estados Unidos.

[1] Ver o ótimo livro Como os países ricos ficaram ricos… E porque os países pobres continuam pobres, do economista Erik Reinert.

* A opinião dos colunistas não reflete, necssariamente, a deste Diário

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