No texto O que é ser de esquerda hoje?, publicado pelo Brasil 247 nesta sexta-feira(17), Emir Sader inicia sua “reflexão” fazendo um resumo que diz que “ser de esquerda já teve conotações diferentes, conforme o período e a situação política nacional e internacional. As noções nasceram na Revolução Francesa, a partir dos lugares que se ocupavam no Congresso. A partir daí, o progressismo, a democracia, as reformas sociais e a defesa dos direitos das pessoas passaram a caracterizar a esquerda. O conservadorismo, a direita”.
Por enquanto, nada de novo. Em seguida, da Europa, Sader traça sua visão sobre a América Latina, bem como da periferia do capitalismo. Diz que “a luta anti-imperialista, pela independência nacional, pela soberania dos países, pela autodeterminação, contra todo tipo de intervenção em cada um dos países do continente e pela democracia, contra as ditaduras, passaram a fazer parte dos programas da esquerda”.
Nota-se que Sader prepara o caminho vagarosamente para que o leitor vá se acostumando com a ideia de que as coisas mudam e que, portanto, a esquerda também deve mudar.
No terceiro parágrafo, o autor diz que a “solidariedade com os países ameaçados ou que sofreram intervenção do imperialismo era parte indissociável da postura da esquerda latino-americana”. O verbo está no tempo correto, no passado; pois, hoje, boa parte da esquerda critica Cuba, como faz abertamente o PSTU, ou tem uma relação de má vontade com a Nicarágua.
O caso mais grave é o da Venezuela. No início, seguindo a caracterização do imperialismo, e sua grande imprensa, de que o país vizinho vive uma ditadura, a esquerda passa agora a defender a intervenção dos Estados Unidos.
A defesa da intervenção é manifesta no completo silêncio de amplos setores da esquerda ante a agressão militar americana, que tem assassinado venezuelanos em alto-mar, bem como enviado submarinos e navios de guerra para a região.
Não bastassem os crimes, o governo americano, que estabeleceu um prêmio criminoso pela captura do presidente Nicolás Maduro, autorizou ações em terra coordenadas pela CIA.
Na imprensa de esquerda praticamente inexistem matérias sobre a agressão contra a Venezuela. O PSOL, em 17 de outubro, um mês após o início das hostilidades, achou de emitir uma nota tímida sobre o fato. Diz que “manifesta sua profunda preocupação com as crescentes provocações militares dos Estados Unidos na costa da Venezuela”, tomando ainda a precaução indevida de dizer que se deve defender nosso vizinho independentemente “da opinião que se tenha sobre o governo deste país”, quando o apoio deve ser incondicional.
Mais história…
Chegando à metade de seu texto, após falar que até a Revolução Cubana e que “o socialismo era um tema distante, asiático, da União Soviética e da China”, Sader afirma que “mais recentemente (sic), quando o imperialismo passou a promover golpes militares contra governos democráticos e anti-imperialistas em países como o Brasil, o Chile, a Argentina e o Uruguai, entre outros, a luta democrática passou a ocupar um lugar central na ação da esquerda. Resistir às ditaduras militares e derrubá-las passou a ser o objetivo central da esquerda, em suas diversas correntes”.
Os golpes e suas tentativas não são recentes. De qualquer modo, o que Sader diz é contradito com a nossa história recente, pois desde 2009 o imperialismo vem dando golpes na América Latina, e a maioria da esquerda apoiou, ou se aliou as golpistas, chegando à aberração de dizer que um ministro da Suprema Tribunal Federal, que votou pela prisão de Lula, é defensor da democracia.
O “objetivo central” da esquerda é a “luta contra o fascismo”, o que a coloca na esteira das democracias liberais, que são verdadeiras ditaduras. Na Europa “democrática” é proibido apoiar a luta do povo palestino contra o regime fascista israelense, que pratica um genocídio visto em tempo real.
É preciso, ainda, relembrar que não se trata apenas de prender manifestantes, ou quem poste suas opiniões na internet. Os governos europeus dão suporte material aos genocidas.
A democracia
Segundo Sader, “na redemocratização [fim do governo militar], o centro da luta da esquerda se deslocou. Quão democráticos eram os países redemocratizados? Quão democrático era o Brasil, o país mais desigual no continente mais desigual do mundo?”.
Ocorre que esse debate é atual, no Brasil se instaurou uma verdadeira ditadura judicial e a maioria da esquerda, em vez de lutar pelos direitos democráticos da população, apoia a censura, bem como se junta com a burguesia para que o Judiciário usurpe as atribuições do Legislativo.
Sader diz que “a discussão na esquerda passou a se colocar em termos do tipo de sociedade dos países do continente” etc., e que “quando o capitalismo aderiu ao modelo neoliberal, a luta de resistência ao neoliberalismo passou a ganhar centralidade. Ser de direita passou a significar estar a favor da implementação do neoliberalismo, enquanto a esquerda se concentrou na resistência a esse modelo”.
O que está dito acima, é que a esquerda está a reboque da burguesia. Em vez de lutar pelo socialismo, a maioria da esquerda “se concentrou na resistência” a determinado modelo econômico. Como hoje, que se concentra na “luta contra o fascismo”, que nada mais é que a adesão a uma das facetas do imperialismo.
Emir Sader diz que, por ser vítima, a América Latina “passou a ser o epicentro da luta contra o neoliberalismo”, e cita diversos presidentes que representariam a resistência a essa política econômica.
Finalmente, no último parágrafo, Emir Sader diz que ser contra o neoliberalismo, de forma consequente, é anticapitalista. E que “a superação profunda e radical do capitalismo neoliberal só poderá se dar em uma nova versão do socialismo: o socialismo do século XXI”.
Eis aí o revisionismo que, aliás, tem praticamente a mesma idade do marxismo. O que seria a “nova versão do socialismo”? Sader não explica. Será o “socialismo moreno” a la Darcy Ribeiro e Leonel Brizola?
Seja como for, a posição de Sader é de desacordo com o marxismo. Falar em “século XXI” é o mesmo que dizem correntes pequeno-burguesas como o Esquerda Online, que diz que os tempos mudaram, Marx não era infalível, que é preciso lutar contra o fascismo, e que para isso a esquerda deve passar para o campo das “democracias liberais”. Essas, que já prenderam mais de 12 mil pessoas no Reino Unido por combaterem o fascismo.
O que há de novo?
A questão que se põe é o porquê de tantos esquerdistas virem a público para pregar o “novo socialismo”, os “novos tempos” etc.
A resposta está na crise do imperialismo e na polarização política. No Brasil, temos visto o centro político ser arrasado pela formação de dois campos muito distintos. Nas urnas, na última eleição presidencial, Lula e Bolsonaro praticamente empataram. Partidos tradicionais da direita mal sobrevivem, são mantidos artificialmente; e, no “centro”, o PSDB praticamente evaporou. João Doria, por exemplo, não sabia se corria para o colo de Bolsonaro ou se unia à “esquerda”. O resultado é que nunca mais se ouviu falar de seu nome.
Na esquerda ocorre o mesmo. Com o aumento da polarização, setores centristas, ou que procuravam ocultar sua adesão ao imperialismo, precisam agora mostrar a cara. Claro que a coisa não acontece de repente, começa envergonhada, fala-se da requentada “nova versão do socialismo”, ou de um rarefeito “socialismo do século XXI”, que pode ser qualquer coisa, até uma versão mais “humana”, com “distribuição de renda”, do capitalismo.




