Nos últimos tempos o tema da “adultização” está comovendo o debate público. Num clima de histeria, a Psicologia e a Psicanálise vêm sendo convocadas a apontar quaisquer consequências da exposição das crianças às redes sociais. Assim, o Felca, agora o mais novo garoto Rede Globo, em seu famigerado vídeo sobre “adultização”, recorreu a uma psicóloga para garantir o argumento de autoridade para a sua propaganda. Muito conveniente quando sabemos que a restrição do acesso à internet beneficia diretamente as grandes redes de TV, que controlavam soberanas a opinião pública.
A especialista só falou senso comum, sem trazer nenhum dado concreto ou argumento teórico. Ela simplesmente criou um clima de histeria, dizendo: “Você largar seu filho no quarto com o celular é a mesma coisa que você largar na praça da Sé, que tem tudo. Ele está sendo exposto a tudo. Não está seguro”. Enquanto o Unicef aponta que em quase 9 de 10 crimes de violência sexual contra crianças documentados o agressor é uma pessoa conhecida. E 2/3 dos crimes acontecem na residência da criança. Assim, instala-se um pânico moral através de um golpe publicitário, popularizado por mais uma palavra da moda, um neologismo para incrementar a campanha de criminalização do uso do celular e da internet e mais uma desculpa para aumentar a censura.
Não há consenso científico para afirmações tão categóricas sobre os efeitos “nefastos” da utilização das redes sociais por crianças. Muito menos elementos para gerar protocolos rígidos de como e por quanto tempo as crianças podem ter acesso ao celular. Muitas das pesquisas são na verdade peças publicitárias, realizadas com métodos superficiais. O argumento de que o uso do celular atrapalha o aprendizado é, na realidade, uma cortina de fumaça. O rendimento dos alunos não é baixo por causa do celular. Ele é baixo porque as escolas brasileiras, em sua maioria, são terríveis, sem ensino de verdade, muitas vezes sem porta nem janela, com goteiras e até mesmo sem professores suficientes. Nesse contexto, a campanha contra a “adultização” só serve para tirar o foco dos problemas estruturais e do constante desmonte da educação.
Os propositores da Lei Felca tentam se amparar em evidências científicas que sugerem uma relação entre o uso excessivo de redes sociais e prejuízos psicológicos em crianças e adolescentes para justificar a restrição do acesso desses jovens às plataformas sem a supervisão dos pais. Esse argumento, contudo, é profundamente problemático. As pesquisas não devem prescrever condutas morais ou políticas. O espaço da decisão sobre direitos pertence à esfera política, que deve considerar também a liberdade, a autonomia e a dignidade das pessoas. Usar resultados de pesquisa para legitimar proibições generalizadas é confundir as coisas. Mesmo que uma medida restritiva pudesse reduzir certos riscos, ela não seria automaticamente legitimada — do mesmo modo que não se proíbe o consumo de alimentos ultraprocessados, álcool, ou cigarros, embora estejam associados a prejuízos à saúde. A democracia implica reconhecer que a ciência pode orientar políticas de esclarecimento e responsabilidade, não de coerção.
Outro aspecto problemático dessa lei é colocar os pais no papel de censores, como se a principal tarefa do educar fosse a regulação dos contatos dos filhos. Mais ainda, os “bons pais” suprimem o acesso das crianças aos celulares. Desconsidera-se que educar exige muita interação e cuidado. Educar as crianças exige melhores salários, menores jornadas de trabalho, segurança trabalhista, e muitos outros fatores.
O crime de abuso ou assédio contra a criança na internet já é previsto, não havendo necessidade de criação de outras leis que limitem ou censurem o uso da internet. Nesse sentido, observamos como a ideia da regulamentação das redes para proteção das crianças trata-se de mais um argumento para implementar a censura, controlar as informações e impedir a comunicação e organização social. A trupe do Felca também não discute as possibilidades de uso, ou qualidade dos conteúdos acessados nos celulares, como se todos os conteúdos fossem necessariamente ruins. A campanha é que o aparelho celular, o dispositivo em si, inevitavelmente faz mal para as crianças – o que é uma loucura total. Eles afirmam, sem demonstrar, que quanto mais velho maior seria a tolerância aos possíveis malefícios do celular. Como se a passagem do tempo fosse a única coisa necessária para o amadurecimento da criança.
Em vez de censura, o que precisaria ser feito é uma orientação de como ferramentas tão revolucionárias como a internet e as redes sociais podem ser utilizadas. A proibição nega uma educação para a criança e prolonga de forma perigosa a infantilidade. A internet é um instrumento de comunicação da sociedade que está dando cada vez mais acesso às informações, ampliando as possibilidades de mobilização social. Nesse contexto, a campanha contra a “adultização” aparece como mais uma forma do imperialismo realizar sua caça às bruxas, mais uma estratégia de repressão, censura e perseguição, mais uma vez utilizando argumentos psicológicos para supostamente proteger crianças indefesas.




