Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Coluna

Identitarismo vendeu gato por lebre

O identitarismo serviu para que a sociedade consentisse com o controle cada vez maior da liberdade de expressão

Temos visto a esquerda pequeno-burguesa unida à direita identitária, dita moderada, na luta contra o “fascismo”, o que soa como um objetivo legítimo. O que não parece muito claro é o que todos esses grupos entendem por fascismo. Ao que parece, pelo menos no Brasil, ser fascista é discordar da política identitária – assim se consegue o milagre de reunir em um mesmo campo a esquerda e a direita que deu o golpe de 2016 contra a direita golpista que não conseguiu dar um golpe. O identitarismo, que se apresentou com ares de bom-mocismo, está na base de um processo de direitização da sociedade.

Como o identitarismo surge com uma espécie de selo de “defesa de minorias” – ligado a movimentos antirracistas, feminismo, agenda LGBT –, qualquer tentativa de discuti-lo é interditada como se apenas empedernidos racistas, misóginos e homofóbicos – ou seja, “fascistas” – ousassem pôr em dúvida a sua política. Os identitários inundaram o vocabulário da língua com termos e formas de expressão cujo uso ou recusa enquadra o indivíduo ideologicamente. Você diz “escravo” ou “escravizado”? Você substituiu “sexo” por “gênero”? Você pospõe o prefixo “cis” quando se refere a um homem ou a uma mulher que não esteja “em desacordo com o gênero que lhe foi designado ao nascer”? Basta que você abra a boca para que seja enquadrado entre os identitários ou entre os fascistas.

Enquanto isso, o fascismo só faz crescer, inclusive no meio da própria esquerda, cada vez mais punitivista e adepta de um modelo policialesco de sociedade. Quem imaginaria a esquerda, que cantava, com Chico Buarque, “Afasta de mim esse cálice” (cale-se), estar hoje a defender restrições à liberdade de expressão? E o identitarismo tem tudo a ver com isso. Ele adestrou a esquerda e simpatizantes da causa – afinal, defendida na Rede Globo, na imprensa como um todo, nas grandes empresas com seus departamentos de compliance e seus mecanismos de denúncia das mil formas de assédio e injúria – a assumir a autocensura como um “marco civilizatório”.  O crime de injúria, sob o pretexto de punir os incivilizados, passou a ser uma forma de controle dos discursos em circulação. Se a regra é punir com base na alegação da vítima da ofensa, que se diz subjetivamente afetada em sua “honra”, qualquer coisa dita pode ser crime, a depender da conveniência.

O identitarismo, vendendo gato por lebre, serviu para que a sociedade consentisse com o controle cada vez maior da liberdade de expressão, um dos direitos essenciais dos indivíduos. Na lógica identitária, a sociedade é ultrassegmentada em grupos de interesses contraditórios, permanentemente de sobreaviso, uns contra os outros, a todo momento mobilizando a estrutura jurídica do estado burguês para resolver seus entreveros cotidianos. Uma honra ofendida aqui, outra acolá – e os juízes decidindo quem deve ser preso, quem deve ter a conta bancária interditada, quem vai pagar e quanto vai pagar. Recentemente, o deputado Kim Kataguiri, da direitista União Brasil, moveu processo desse tipo contra o presidente do Partido da Causa Operária, Rui Costa Pimenta, que chamou de “nazista” sua proposta de impedir que o Brasil enviasse ajuda humanitária aos palestinos em Gaza. O tribunal entendeu que a afirmação ofendia a “honra” do deputado, avaliada em R$ 16 mil.

O mais incrível é que um tribunal aceite esse tipo de alegação, mormente no contexto em que se dá. É preciso ter perdido, mais que a honra, toda a fé na humanidade para apresentar uma proposta como essa. Desde o início do conflito, que acaba de completar dois anos, o “estado de Israel” perpetrou toda sorte de ignomínias – bombardeou hospitais, jogou bombas sobre tendas depois de destruir as edificações, impediu a entrada de comida, de remédios e até de água, assassinou médicos e jornalistas, além de mais de 67 mil pessoas inocentes, inclusive uma grande quantidade de crianças. É difícil encontrar um adjetivo à altura da vergonhosa proposta do deputado. A palavra é crime, a proposta – ao que tudo indica – é legítima. O que a legitima é, muito provavelmente, o lobby sionista, apoiador da carnificina liderada por Netanyahu, que, recentemente, disse, alto e bom som, que ia “terminar o serviço” em Gaza. O projeto sionista de limpeza étnica parece aceitável também. O crime é a indignação, que se manifesta por palavras.

“Israel” seria um lugar “civilizado”, pois, em Tel Aviv, homens gays transitam de mãos dadas com naturalidade. Todos os grandes jornais já enviaram seus repórteres, a convite do generoso Netanyahu, para conhecer esse paraíso LGBT. Quem, porventura, ousar criticar a política dessa nação tão civilizada logo será tachado de “antissemita” e enquadrado na lei da injúria racial, aquela que foi sancionada pelo presidente Lula para proteger a população negra. Defender o movimento de resistência do povo palestino, encabeçado pelo Hamas, é ser praticante de “antissemitismo” – e assim, sob a ameaça de prisão ou de altas multas, espera-se calar as críticas à barbárie, que, graças à internet, a imprensa, dominada pelos sionistas, não conseguiu esconder.

Não conseguiu, mas continua tentando. Desde o início do conflito, deflagrado em 7 de outubro de 2023, na Operação Dilúvio de Al-Aqsa, a imprensa traduz os acontecimentos como um tenebroso ataque terrorista cometido pelo Hamas contra “Israel”. O Hamas é descrito como grupo “terrorista”. Eis uma palavra capciosa, que sempre foi usada para designar inimigos políticos. Ao usar sistematicamente o adjetivo “terrorista”, a imprensa burguesa tenta descredibilizar a resistência do povo palestino. Além disso, põe nos polos do conflito o “estado de Israel” e o Hamas, como se este não fosse uma representação do povo palestino. Mesmo assim, muitas vezes relataram declarações do “Ministério da Saúde do Hamas”, o que nos revela um tipo peculiar de “grupo terrorista”.

Como a história é contada pela metade, pelo viés da propaganda sionista, quem se informa por esses veículos absorve essa interpretação, tomada como fato. No entanto, o poder da imprensa burguesa é ameaçado pelas redes sociais, em que não existe mediação. Diante disso, resta apelar para o Judiciário e criminalizar as críticas inconvenientes. O Judiciário, que também se passa por identitário, age politicamente, num movimento cada vez mais direitista de controle da opinião. É hora de perceber o estrago que o identitarismo vem fazendo na sociedade: com sua máscara progressista, não passa de atalho para um modelo cada vez mais autoritário de sociedade. Ao que tudo indica, na prática, ser identitário não é o oposto de ser fascista – aliás, muito pelo contrário.

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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