José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Dívida pública norte-americana no centro da engrenagem financeira

Uma parcela enorme de fluxos de caixa globais é avaliada direta ou indiretamente em dólares, o que fornece aos EUA grande poder, inclusive de retaliação

A dívida pública dos Estados Unidos pode ser considerada o eixo do sistema financeiro global contemporâneo. Os títulos do Tesouro dos EUA (US Treasuries) funcionam simultaneamente como o principal ativo global e como referência de preços para praticamente tudo que tem fluxo de caixa, além de serem a reserva internacional preferida pelos bancos centrais. Esse fenômeno coloca a dívida norte-americana no centro da engrenagem que move liquidez, preços e risco nas finanças mundiais.

Esses títulos são considerados o ativo livre de risco em dólares por excelência: têm alta liquidez, padrão jurídico claro e baixíssimo risco de crédito soberano. Nas crises, a maioria dos investidores corre para esses títulos, que exercem o papel de “porto seguro” diante da aversão ao risco. Em mercados de financiamento de curtíssimo prazo, os títulos do Tesouro americano são os ativos mais aceitos como garantia para assegurar obrigações financeiras. Servem também como âncora e referência para taxas em dólares: a taxa de juros dos títulos do Tesouro dos EUA com prazo de 10 anos é a principal referência usada no mundo para calcular quanto valem hoje os fluxos de caixa futuros em dólares. Quando essa taxa sobe ou desce, altera-se o “desconto” aplicado a esses fluxos — e, por consequência, o preço de quase tudo.

Uma parcela enorme de fluxos de caixa globais é avaliada direta ou indiretamente em dólares, o que fornece aos EUA grande poder, inclusive de retaliação. A Venezuela, por exemplo, sofre mais de mil sanções contra sua economia, com profundo impacto em seu desenvolvimento nacional. As sanções financeiras estão entre as mais prejudiciais: o governo venezuelano e a PDVSA (Petróleos de Venezuela, S.A., estatal de petróleo e gás) estão proibidos de emitir novos títulos, realizar reestruturações, distribuir dividendos etc. Com essas restrições, o país fica sem condições de rolar a dívida soberana e sem acesso a mercados de crédito, perdendo totalmente a capacidade de financiamento externo. O setor privado também é impactado, pois os riscos soberanos encarecem o crédito para empresas locais, que igualmente perdem acesso a linhas comerciais.

Os títulos do Tesouro norte-americano também são os preferidos pelos bancos centrais para acumular reservas, devido à liquidez e à facilidade de custódia e liquidação. Ou seja, no processo de compra e venda, esses títulos são de fácil manuseio, já que a demanda oficial pelo ativo estabiliza o mercado. Ademais, nenhum outro mercado no mundo tem a escala e a infraestrutura oferecidas por esses papéis. O mercado do euro é grande, mas apresenta risco soberano elevado e, além disso, os “Bunds” (títulos públicos alemães, de baixíssimo risco dentro da zona do euro) não têm a mesma escala dos papéis americanos. Os países da união monetária não emitem a moeda que utilizam: um governo da zona do euro não controla isoladamente sua política monetária nem “imprime” euros. Isso torna o risco de insolvência e liquidez uma preocupação real em momentos de crise financeira, especialmente na atual crise econômica da Europa.

Apesar de a economia japonesa ser a quarta do mundo, o iene/JGBs (títulos do governo do Japão) não têm a profundidade e a estabilidade do equivalente americano. O ouro, por sua vez, funciona como reserva de valor, mas tem rendimento baixo ou nulo, não possui elasticidade de oferta e apresenta logística/custódia mais onerosa e complexa. O RMB (Renminbi, moeda oficial da China) tem menor convertibilidade e infraestrutura jurídico-financeira mais limitada, sem alcance global, por enquanto. Em suma, a combinação de escala + liquidez + convertibilidade + infraestrutura institucional mantém os títulos do Tesouro dos EUA no topo da preferência.

A dívida — tida como impagável — e o déficit orçamentário dos EUA levam o Tesouro a emitir títulos, absorvidos pelo mundo todo. Esse cassino financia a dívida americana e garante um ativo ainda considerado seguro. Obviamente, a instabilidade financeira mundial e o crescimento avassalador da dívida americana tornam esse jogo arriscado. Por essa razão (e também por motivos geopolíticos), a China vem diminuindo gradativamente sua exposição a títulos do Tesouro dos EUA: a posição chinesa recuou de um máximo de US$ 1 trilhão em 2013–2014 para cerca de US$ 756,3 bilhões em agosto de 2025. O objetivo é diversificar as reservas e reduzir a dependência do dólar, realocando parcialmente para ouro, outras moedas e, em menor grau, ativos não americanos. Essa diversificação visa reduzir a vulnerabilidade a sanções e a dependência da infraestrutura financeira norte-americana.

A China, ao descartar títulos do Tesouro norte-americano, busca também controlar o risco geopolítico associado à dependência excessiva desse tipo de reserva, especialmente em relação a um país que eleva o tom das hostilidades há anos. Pequim observa ainda o que ocorre com outros países catalogados pelo imperialismo como inimigos. Desde o início da guerra na Ucrânia, países ocidentais congelaram uma grande quantidade de ativos russos, incluindo reservas do Banco Central e títulos soberanos sob custódia ocidental (estimados em US$ 300 bilhões). Ademais, imobilizaram ativos de bancos, empresas estatais e indivíduos russos, passando inclusive a usar rendimentos associados a esses ativos. A diversificação reduz a fragilidade da economia chinesa a medidas comerciais e tecnológicas inesperadas e agressivas, implementadas ao menos desde o governo de Barack Obama. A China também converte parte das reservas em liquidez, visando melhorar ainda mais o desempenho de sua economia.

A redução chinesa em títulos do Tesouro dos EUA, parte de uma estratégia de diversificação e gestão de riscos, ocorre de forma gradual, tornando o processo administrável à medida que outros compradores adquirem os papéis disponibilizados. Uma venda súbita, coincidente com outros choques (como um déficit mais alto que o previsto nos EUA), não interessa nem ao próprio governo chinês, grande detentor desses papéis.

A base de detentores dos papéis da dívida dos EUA é ampla: investidores domésticos (bancos, gestoras, fundos de pensão, seguradoras), o Federal Reserve e investidores estrangeiros.

O estoque atual da dívida, de US$ 36 trilhões, e os cerca de US$ 3,3 bilhões/dia em juros implicam, como no Brasil, na redução da capacidade do Estado de sustentar outras despesas, como infraestrutura, ciência e saúde. A financeirização do orçamento afeta diretamente, inclusive, a estratégia imperialista dos EUA, fortemente assentada em sua capacidade bélica. Em 2024, os juros se aproximaram muito dos gastos com defesa. Projeções oficiais apontam que, a partir de 2025, os juros tendem a superar de forma mais evidente os gastos militares.

A aproximação ou ultrapassagem dos gastos com a dívida em relação aos gastos de guerra mostra a magnitude da financeirização nas economias de todo o mundo. Os EUA promovem e patrocinam guerras globalmente, seja por objetivos econômicos imediatos, seja por necessidades geopolíticas e militares. Mesmo assim, nos últimos anos, a aceleração dos juros e os gastos com a dívida cresceram mais rapidamente do que os gastos militares.

O efeito da dívida pública sobre o governo norte-americano guarda similaridades com o que ocorre nos países atrasados, apesar do poderio político, econômico e militar dos EUA. Gastos maiores com juros reduzem a margem para despesas discricionárias, incluindo defesa e investimentos em geral, sem aumento de impostos ou expansão do déficit.

O governo brasileiro sofre duras críticas quando apresenta um déficit orçamentário primário (sem contar os juros) de 0,36% do PIB, como em 2024. Já o déficit primário dos EUA no ano fiscal de 2024 foi de aproximadamente US$ 700 bilhões, 2,4% do PIB — quase sete vezes superior ao do Brasil (imaginem o Brasil com um déficit primário nesse nível). Nos EUA, como no Brasil, entra governo, sai governo e, independentemente da posição política, ninguém resolve o problema da dívida pública. Com a diferença de que, no caso norte-americano, por se tratar do país mais imperialista do mundo e dono da máquina de imprimir dólares, ninguém cobra superávits primários.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a deste Diário

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