PEC das Prerrogativas

A interpretação fluida da lei

Colunista sugere que a interpretação da lei é fluida, mas, para provar isso se vale até mesmo de leis anteriores à Constituição de 1988

Ditadura Judiciária

Ontem, dia 23 de setembro, foi publicada no sítio Brasil 247 uma coluna de autoria de Fernando Augusto Fernandes intitulada “Ataque à democracia é terrorismo para Constituição: sem anistia ou “blindagem””, na qual o autor tenta provar que a chamada “PEC da blindagem” e a anistia aos supostos participantes do suposto golpe de Estado bolsonarista seriam inconstitucionais.

O texto se inicia com:

Assim como a língua, a interpretação constitucional é viva e se modifica à medida que a sociedade evolui. Até outro dia, as pessoas fumavam em avião, cinema, em todo e qualquer lugar. Esse direito inalienável da “autodestruição” foi compatibilizado com a garantia constitucional da saúde (art. 5º – direito à vida, art. 6º – a saúde). É preciso reconhecer o direito de não criminalização da autodestruição, ressalvando-se, contudo, a vedação quando houver prejuízo a terceiros, como no caso dos fumantes passivos.

A questão do cigarro não é uma mudança na interpretação das leis, mas sim uma lei diferente da que existia anteriormente. A interpretação das leis não pode mudar, pois as leis, em um Estado democrático de direito, têm que ser facilmente entendíveis e os juízes devem segui-las à risca.

Ainda assim, as leis respondem sempre a interesses divergentes na sociedade. As leis contra o fumo respondem aos interesses de setores privados, como os dos convênios de saúde que exigem do Estado que combata o cigarro para reduzir os custos médicos, assim como dos bancos que querem menos gasto do Estado com saúde. Por parte da população, não há interesse algum nessas leis que controlam a vida dos cidadãos.

A interpretação fluida das leis, como propõe o autor, estaria na ideia de que o judiciário poderia decidir sobre o funcionamento da lei, independente do que estivesse escrito. Na prática, é mais uma usurpação dos poderes do Judiciário sobre os do Legislativo, já que os juízes acabariam legislando ao decidir sobre a vida dos cidadãos. Tomando como exemplo o caso do cigarro novamente, seria uma questão de interpretação se quem decidisse que não se pode fumar em um avião fosse o STF, não o Congresso.

No entanto, confundindo a Lei Federal nº 12.546/2011, que limitou os direitos dos fumantes, com as decisões do Supremo, o autor afirma:

O mesmo aconteceu em relação à independência dos Poderes. Na formulação da Constituição, entre as prerrogativas atribuídas a deputados e senadores, estava a de não poderem ser processados sem a autorização da respectiva Casa Legislativa (redação antiga do art. 53, § 1º, da Constituição Federal).

A vontade popular exigiu uma interpretação de que o princípio da isonomia, talhado no art. 5º, de que “todos são iguais perante a lei”, não comporta o privilégio de uma imunidade que extrapole o necessário para o exercício do mandato popular.

Isso sim é um caso de interpretação, primeiro, porque o autor interpreta que quem decidiu contra a imunidade parlamentar foi o povo, não a Globo, o Judiciário e o imperialismo. Segundo, porque também é interpretação do autor a ideia de isonomia.

Segundo o dicionário Aulete, isonomia é “1. Jur. Princípio, assegurado pela Constituição, segundo o qual todos são iguais perante a lei, não podendo haver nenhuma distinção em relação a pessoas que estejam na mesma situação”. O “na mesma situação” é importante, já que, não é questão de isonomia, por exemplo, que uma mulher goze do direito jurídico de licença maternidade de quatro ou seis meses, enquanto o homem goze apenas de cinco dias. Pode ser que os homens precisem e mereçam mais tempo, mas não se trata de uma questão de destruição da isonomia, pois trata-se de uma questão envolvendo pessoas em situações diferentes.

A isonomia serve, também, para garantir que os direitos das pessoas não sejam retirados. Por exemplo, quando alguém diz que determinada pessoa não deveria ter direito a um julgamento justo por ser “bandido”, estaria aí ferindo o princípio da isonomia, pois, independente da pessoa, todos têm direito a um julgamento justo. Talvez os defensores atuais dos desmandos do STF não entendam essa parte, pois, eles mesmos defendem que nem todas as pessoas são iguais perante a lei e que, a algumas, como é o caso dos bolsonaristas, deveriam ser julgadas em tribunais de exceção.

O que está proposto na PEC em questão não fere a isonomia, primeiro, porque se trata de um caso diferente do do cidadão comum, pois trata de parlamentares eleitos para o cumprimento de um mandato. Em segundo lugar, a isonomia não pode servir para retirar o direito de alguém, mas sim para garantir o direito de todos.

Na sequência, o autor apresenta o seguinte:

O povo e o Supremo Tribunal Federal passaram a interpretar que é inadmissível que a proteção ao exercício do mandato extrapolasse para o abuso. Por isso, garantido o direito à palavra, a crítica necessária ao nobre papel político, mas não ao desvirtuamento para cometimento de crimes comuns, como corrupção, estupros e assassinatos. Assim, o Congresso alterou o artigo constitucional. Mesmo o exercício da palavra não pode descambar para o cometimento de crimes, como injúria, difamação ou mesmo incitação ao crime.

O povo não interpretou nada, quem interpretou foi o STF, que nada tem a ver com o povo, pois os ministros não passaram pelo crivo do voto.

A desculpa dada pelo autor em “…garantido o direito à palavra, a crítica necessária ao nobre papel político, mas não ao desvirtuamento para cometimento de crimes comuns, como corrupção, estupros e assassinatos” é o mesmo argumento usado pela Ditadura Militar contra o Congresso na crise que resultou em seu fechamento e na promulgação do AI-5, quando a ditadura queria prender deputados por crimes comuns.

Na sequência:

A interpretação do texto constitucional, portanto, é dinâmica e evolui na medida em que a sociedade amadurece rumo à secularização. Assim como os atos administrativos exigem motivação para sua legalidade, não é possível admitir que, sob o pretexto da separação dos Poderes, possa haver uma involução em relação à garantia constitucional da isonomia. Ela já é mitigada para a proteção do mandato com a garantia do foro.

Sobre a secularização, não faz sentido algum. O direito de imunidade parlamentar nasce justamente na Europa, na luta contra o feudalismo, que era o regime da Igreja. Também não se pode interpretar a constituição, pois não é uma peça de teatro. Ela deve ser seguida à risca.

A lógica seguida pelo autor da coluna simplesmente não faz sentido. Se nada é absoluto e as coisas mudam na interpretação das leis, por que ele está clamando por um princípio imutável? Poderíamos argumentar que, hoje, a isonomia é interpretada de maneira diferente.

Seguindo com o texto, alguns parágrafos depois, o autor argumenta:

Seria possível admitir que uma maioria do Congresso Nacional pudesse hoje revogar o crime de racismo? Revogar a proteção da mulher em relação à Lei Maria da Penha, ou permitir a homofobia? Revogar a criminalização da divulgação do nazismo? Pergunta-se se o Congresso tudo pode, ou se essas conquistas legislativas e mudanças constitucionais citadas se inscrevem numa interpretação de direito natural que caminha a garantir os direitos individuais. Quando pune o racismo, o nazismo e a homofobia, afirma-se que nem mesmo o Congresso poderia revogar tais avanços.

Novamente, segundo a lógica do autor, as leis do racismo, a proteção da mulher e a permissão da homofobia seriam atentados contra o princípio da isonomia.

Mas, sim, o Congresso deve ter o direito de revogar qualquer lei, pois foi eleito pelo povo justamente para isso: legislar. Se essa é a vontade da maioria da população, então isso é o que deve ser feito e é assim que uma democracia deveria funcionar.

É interessante que esse trecho prova também que o que está em jogo não é a questão de processos contra parlamentares por crimes cometidos, mas sim, o controle da política nacional pelo STF. Sendo assim, o STF deveria ter o direito de decidir as leis país, mesmo sem que todos os ministro se juízes do país tenham recebido um único voto da população para isso.

Vamos inverter a questão: vamos imaginar que um deputado quer propor uma lei de defesa dos LGBTS, mas que, por ir frontalmente contra os interesses da burguesia, essa se mobilize e peça para que o STF persiga a pessoa em questão. O STF deve ter esse direito?

Mais adiante no texto, o autor se propõe a discorrer sobre a diferença da proposta de anistia atual em relação à anistia do fim da Ditadura:

Primeiro é preciso claramente diferenciar o que foi a anistia em 1979 e a debatida em democracia. Vivemos uma ditadura de 1964 em diante – esta que fechou o Congresso Nacional, impediu eleições diretas, criou censura. Nessa oportunidade, três ministros da Suprema Corte foram aposentados compulsoriamente (cassados), e dois, em razão disso, pediram aposentadoria. Deputados foram cassados igualmente, não pelas Casas Legislativas, mas por ordens militares, além de pessoas serem presas por legislações especiais não votadas no Congresso. Foram editadas leis de segurança nacional e alterado o juiz natural, extinguiu-se a possibilidade de habeas corpus para crimes políticos. Os militares tiraram a competência dos tribunais civis, passando julgamentos para os tribunais militares. Impediram recursos do Superior Tribunal Militar para o Supremo Tribunal Federal.

Primeiro, o AI-5, que fechou o Congresso, o fez exatamente por conta da existência da imunidade parlamentar.

Segundo o que ele quer dizer é que a “democracia” teria o direito de fazer o mesmo que a ditadura, já que, até agora, supostamente, não houve os mesmos crimes.

Seguindo, o autor cita a Constituição para embasar asuposta inconstitucionalidade da anistia:

“”XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (Regulamento) XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou

Os bolsonaristas não fizeram nada disso. A única “prova” que se tem contra eles é um grupo em que algumas pessoas se propunham a fazer, mas nada foi colocado em prática. As pessoas do 8 de janeiro não estavam armadas.

E na sequência:

Uma leitura ahistórica e não aprofundada pode sustentar que o inciso XLIV proibiu somente fiança e prescrição para os crimes armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, enquanto o dispositivo anterior, inc. XLIII, vetou a graça ou anistia somente para tortura, terrorismo, tráfico e crimes hediondos. A conclusão superficial seria quanto à possibilidade de anistia.

Ocorre que a Constituição de 1988, ao se referir a terrorismo, é anterior à lei que definiu o crime de terrorismo (Lei nº 13.260/1996). Portanto, o que a Constituição definia como terrorista eram aqueles ditos atos terroristas definidos pela lei de segurança vigente.

Então, o grande lutador pela democracia e que acredita que a interpretação da lei sempre deve mudar, busca a interpretação dada em 1988 sobre a lei de segurança nacional, da ditadura, e que foi substituída em 2021, para compor seu argumento.

Na sequência, como realmente não existe nada contra os bolsonarista, ele volta  nos “atos preparatórios”. Não nada no inciso que ele cita sobre   os tais atos preparatórios, mas, como sabemos, o autor é adepto da ideia de que a interpretação da lei é praticamente livre:

Assim, o inciso XLIV, quando se refere à ação de grupos armados contra a Constituição e o Estado de Direito, o faz como atos terroristas e indica a necessidade de punição, inclusive de um ato preparatório, que é a reunião de pessoas em quadrilha ou organização criminosa armada para atentar contra a democracia. A definição disso, no âmbito constitucional, é terrorismo.”

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