Ligada no Brasil ao PSTU, a Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI) publicou no seu sítio o artigo A esquerda não deve se aliar com o peronismo e Cristina Kirchner, defendendo que a disputa entre o nacionalismo argentino representado por Kirchner e o neoliberalismo turbinado de Javier Milei seria “uma briga entre ladrões”, tomando emprestado a caracterização de Lênin sobre as disputas inter-imperialistas. Curiosamente, esse é o mais próximo que o artigo chega do problema do imperialismo, que, claramente, é desconsiderado ao longo de todo o texto:
“Consideramos esta posição [a denúncia da perseguição judicial contra Kirchner] um erro grave, oportunista, movido por cálculos eleitorais, e representa uma reivindicação das ações de Cristina. Respeitamos o sentimento de muitos trabalhadores que lamentam a situação de sua líder, mas não o compartilhamos. E somos forçados a dizer a verdade: Cristina colhe o que plantou.”
Eis que, em um passe de mágica, a América do Sul se tornou um subcontinente soberano, onde o imperialismo não tem feito uso sistemático da alta burocracia judicial para reorganizar a região politicamente após a sequência de derrotas nos primeiros anos da década de 2000 que culminaram na chamada “onda rosa”, isto é, a ascensão de regimes esquerdistas e nacionalistas. Não houve golpe contra Manuel Zelaya em Honduras, Fernando Lugo no Paraguai, Rafael Correa no Equador, Dilma Rousseff no Brasil, Evo Morales na Bolívia e, novamente no Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018. Em todos os casos, o protagonismo da repressão judicial é flagrante, obrigado a LIT-QI a reconhecer:
“A Justiça faz parte da parte do mais corrupto do regime político que nos vendem como ‘democracia’. E a Suprema Corte é sua expressão máxima. Nenhum deles se preocupou com os acordos de Carlos Menem, Mauricio Macri ou Javier Milei, semelhantes aos dos Kirchner. Repudiamos essa Justiça, assim como todas as instituições da ‘democracia’, que só servem para perpetuar a exploração, a submissão ao Fundo Monetário Internacional e ao capital estrangeiro e nacional. Não temos nada a ver com isso e rejeitamos suas sentenças. Neste caso, uma sentença guiada por cálculos eleitorais. Mas isso não nos leva a defender Cristina.”
Ora, que maneira curiosa de “repudiar essa justiça”. Ao mesmo tempo em que reconhecem que o sistema judiciário é podre, anunciam abertamente que não defenderão uma perseguida política atacada por esse instrumento de opressão. E pior, por revanchismo. É o que fica evidente quando argumentam que os “governos peronistas, como todos os outros, perseguiram os lutadores”.
Nota-se a falta de maturidade política para os aprendizes de feiticeiro da LIT-QI. A desorientação é ainda mais inacreditável quando nos deparamos com o fato de que a sigla se reivindica trotskista. Vejamos como Leon Trótski lidou com uma situação similar, quando em dezembro de 1939, o governo dos Estados Unidos queria usá-lo para jogar o stalinista Partido Comunista Americano (PCA) na ilegalidade:
“Quanto ao Comintern, a supressão só poderia ajudar essa organização completamente degenerada e comprometida. A dificuldade na situação da Comintern é resultado da contradição irreconciliável entre o movimento internacional dos trabalhadores e os interesses da camarilha dominante do Crêmlin. Depois de todos os seus ziguezagues e enganos, a Comintern obviamente entrou em seu período de decomposição. A supressão do Partido Comunista restabeleceria imediatamente sua reputação aos olhos dos trabalhadores como um lutador perseguido contra as classes dominantes.
Entretanto, a questão não se esgota com essa consideração. Sob as condições do regime burguês, toda supressão de direitos políticos e de liberdade, não importa contra quem seja dirigida no início, no final inevitavelmente recairá sobre a classe trabalhadora, especialmente seus elementos mais avançados. Essa é uma lei da história. Os trabalhadores devem aprender a distinguir entre seus amigos e seus inimigos de acordo com seu próprio julgamento e não de acordo com as dicas da polícia.”
Na época em que tais declarações foram feitas, Trótski encontrava-se exilado no México, o único país do mundo onde recebeu guarida, após ser desterrado pelo stalinismo, que poucos meses depois, viria a assassiná-lo. A distância entre a posição política de Trótski e a dos torcedores da LTI-QI é colossal.
O dirigente revolucionário poderia ter dito que a ditadura stalinista estava “colhendo o que plantou”, mas não. Sendo um revolucionário sério, a preocupação de Trótski continua sendo a evolução da luta de classes para um desfecho positivo para os trabalhadores. Por isso, mesmo tendo todos os motivos do mundo para odiar o stalinismo, tendo sentido na pele a opressão dessa ditadura repulsiva, ele não se deixa levar pelos sentimentos, mas ensina: “toda supressão de direitos políticos e de liberdade, não importa contra quem seja dirigida no início, no final inevitavelmente recairá sobre a classe trabalhadora”.
Fosse da LTI-QI, poderia ter uma posição à la Pôncio Pilatos e lavado as mãos, como fazem os ditos “trotskistas”. Não é o que o organizador do Exército Vermelho faz, porque a orientação da classe trabalhadora e o combate às confusões que a desnorteiam continuava sendo sua principal preocupação.
Não foi a única vez que o dirigente da Revolução de Outubro se posicionou de tal maneira. Reproduzimos abaixo um trecho de uma entrevista feita ao jornalista Mateo Fossa, em setembro de 1938:
“Existe atualmente no Brasil um regime semi-fascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto, que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você: de que lado do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso, eu estaria do lado do Brasil ‘fascista’ contra a Inglaterra ‘democrática’. Por quê? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse, ela colocaria outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. É preciso não ter nada na cabeça para reduzir os antagonismos mundiais e os conflitos militares à luta entre o fascismo e a democracia. É preciso saber distinguir os exploradores, os escravagistas e os ladrões por trás de qualquer máscara que eles utilizem!”
Basicamente, o líder revolucionário ensina que não há neutralidade possível quando um dos lados do conflito é o imperialismo. No caso argentino, é demasiadamente claro que não existe, como diz a LIT-QI, “uma briga entre ladrões”, mas uma disputa política entre o nacionalismo argentino e o imperialismo, a força responsável por impulsionar Milei para a devastação total do país vizinho e por usar o Judiciário para remodelar o sistema político argentino, a exemplo do que fez em toda a América Latina e no mundo.
Em frontal oposição ao que se espera de uma organização orientada pelo programa da IV Internacional, o que a LIT-QI faz é dar um apoio a nada menos do que o imperialismo. Isentar-se de denunciar a perseguição judicial do imperialismo contra Kirchner ou contra quem quer que esteja sendo perseguido, finalmente, é o mesmo que apoiar a ditadura mundial.
A posição da LIT-QI, portanto, é uma vergonha para qualquer organização que se diga não apenas trotskista, mas revolucionária. É o completo abandono da classe operária diante dos seus inimigos mortais, sendo o oposto do que os trabalhadores devem fazer sempre que identificarem um conflito no qual o imperialismo seja uma das partes, não importa qual seja a outra.



