A região costeira de Latakia, no norte da Síria, foi palco de uma série de incêndios de grandes proporções no início de julho, em meio a uma escalada de violência sectária contra a população alauíta. As chamas, oficialmente tratadas como acidentes naturais, foram reivindicadas como ataque deliberado pelo grupo armado Saraya Ansar al-Sunna, alimentando denúncias de que o novo governo sírio estaria mascarando uma campanha de limpeza étnica com o uso sistemático do fogo.
Em comunicado divulgado três dias após o início dos incêndios, Saraya Ansar al-Sunna afirmou ter iniciado o fogo na região de Qastal Ma’af com o objetivo declarado de expulsar os “nussairis” — termo sectário usado para se referir aos alauítas. “As chamas se espalharam para outras áreas, forçando os alauítas a abandonar suas casas e provocando casos de sufocamento”, dizia a nota. A mesma organização havia assumido, semanas antes, a autoria do atentado à Igreja Mar Elias, em Damasco, no dia 22 de junho, episódio que desencadeou um embate público entre o grupo e o Ministério do Interior.
Enquanto a pasta de Anas Khattab — ex-comandante da Al-Qaeda e cofundador da Frente al-Nusra — atribuía o ataque ao Estado Islâmico, Saraya Ansar al-Sunna nomeava outro responsável: Muhammad Zain al-Abidin Abu Uthman. Apesar de prometer divulgar confissões que comprovassem sua versão, o ministério permaneceu em silêncio. Durante visita à região dos incêndios, Khattab negou qualquer evidência de incêndio criminoso, ainda que sua própria pasta conduzisse investigações e detenções relacionadas.
A negativa das autoridades em reconhecer a autoria dos ataques tem sido interpretada como tentativa de manter a aparência de controle e de evitar o reconhecimento do envolvimento de grupos aliados. Moradores alauítas entrevistados pelo The Cradle afirmam que o governo utiliza Saraya Ansar al-Sunna como instrumento para atacar comunidades minoritárias, mantendo a possibilidade de negar envolvimento direto.
A tensão já era alta desde março, quando uma série de incursões e assassinatos sectários devastaram diversas localidades em Latakia. Estima-se que ao menos 2.000 pessoas tenham sido mortas naquele período, e diversas aldeias, majoritariamente alauítas, foram incendiadas ou esvaziadas, com casos de valas comuns não reportados oficialmente.
A poucos dias do início dos incêndios de julho, o assassinato de dois irmãos que trabalhavam na colheita de folhas de parreira e o sequestro de uma menina provocaram protestos em Beit Yashout e Al-Burjan, no campo de Jableh. As manifestações coincidiram com os primeiros focos de incêndio florestal na região.
O fogo mais destrutivo foi justamente o de Qastal Ma’af, assumido pelo grupo armado. Embora com o objetivo declarado de expulsar alauítas, a área afetada abrigava também populações turcomenas sunitas. Dias depois, o próprio grupo divulgou uma nota confusa, dizendo que “a queima de vilarejos sunitas é atribuída a grupos nussairis”, inserindo os ataques no contexto de uma disputa interna.
Fontes locais informaram que os incêndios consumiram grandes áreas de floresta e terras agrícolas, provocando o deslocamento forçado de moradores. Ainda assim, o governo seguiu negando a possibilidade de ação criminosa. Para parte da população, a recusa faz parte de uma estratégia deliberada para deslegitimar as denúncias e evitar tensões sectárias mais evidentes.
Circulam nas redes vídeos em que agentes da segurança, milicianos beduínos sunitas e até veículos com placas turcas aparecem ateando fogo a propriedades alauítas. Em Al-Haffa, no dia 9 de julho, trinta jovens se mobilizaram para conter um incêndio de pequena escala. Nove deles, todos alauítas, foram presos e desapareceram em seguida. Familiares receberam como única resposta que os detidos haviam sido “transferidos para Latakia”.
De acordo com relatos enviados ao The Cradle, essas ações fazem parte de uma tentativa do governo Sharaa de alterar a composição demográfica da costa síria. O objetivo seria asfixiar os alauítas econômica e fisicamente, inviabilizando sua permanência na região. “Eles dependem da terra e do trabalho. A meta é matá-los, expulsá-los ou deixá-los isolados sob constante ameaça de sequestro, assassinato e incêndios. É o extermínio da subsistência”, declarou um morador.
A suspeita é de que essa ofensiva esteja associada a interesses externos. Turquia teria o objetivo de expandir sua influência sobre a costa síria para explorar reservas de gás no Mar Mediterrâneo. Grupos turcomenos e uigures, aliados ao governo, estariam envolvidos em provocações calculadas para gerar pedidos de intervenção turca.
Casos semelhantes já haviam sido registrados. Em 2020, 39 pessoas foram presas por envolvimento em incêndios organizados em Latakia, Tartous, Homs e Hama, supostamente com financiamento estrangeiro. Em 2024, a região de Wadi al-Nasara, reduto cristão em Homs, foi atingida por dezenas de incêndios num único dia, episódio que também se espalhou até Kasab, perto da fronteira turca. O então governador, Khaled Abaza, declarou que a multiplicidade de focos indicava uma ação coordenada, e confirmou que dois veículos suspeitos estavam sendo procurados.
O padrão revela o uso recorrente do fogo como instrumento político. Cada grande incêndio nos últimos anos coincidiu com momentos de transição de governo ou aumento da violência sectária. Paralelamente, aumentam relatos de presença de serviços de inteligência na região, buscas por esconderijos de armas, e até especulação imobiliária sobre as áreas queimadas — apontadas como futuras zonas de turismo de luxo.
A constante presença sionista também é mencionada como elemento de instabilidade, com “Israel” operando indiretamente para fomentar divisões internas e desarticular o Eixo da Resistência.
A resposta oficial — que nega qualquer envolvimento humano nos incêndios — é vista pela população como mais uma evidência de cumplicidade.





