Foi com grande entusiasmo, mal disfarçado nos austeros noticiários da mídia hegemônica, que se comemorou, ao menos na metade do país, por assim dizer, o recebimento da denúncia de Bolsonaro e de mais sete aliados, os quais compõem o chamado “núcleo crucial”. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal admitiu por unanimidade a acusação feita pelo Procurador-Geral da República e, assim, foi deflagrado o processo penal que apura os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, além dos crimes de dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com considerável prejuízo, além de deterioração de patrimônio tombado.
Os advogados de defesa, dentre os quais estão festejados penalistas, como o professor Cezar Roberto Bittencourt, fizeram suas alegações de defesa na tribuna, quase todas baseadas na falta de justa causa penal, bem como na falta de provas do liame subjetivo entre seus clientes e os participantes dos atos do dia 8 de janeiro de 2022.
As alegações segundo as quais estaria a denúncia baseada unicamente nas delações premiadas foram rejeitadas por todos os ministros. Não fosse pelo alerta do ministro Luiz Fux, que declarou ver com desconfiança as oito delações de Mauro Cid, cada qual com relatos diversos e novidades, pareceria uma condenação antecipada. De fato, a denúncia do Procurador-Geral da República é um compilado de notícias de jornal ladeado por documentos que a PF obteve a partir da delação de Mauro Cid. São atas de reuniões secretas e minutas de documentos “oficiais”, além de conversas de WhatsApp e publicações em redes sociais.
Com efeito, o ministro Luiz Fux, por suas declarações, parecia estar bem atento às controvérsias penais e processuais penais que podem ser arguidas pelos advogados de defesa, já que se trata de possíveis, senão prováveis, nulidades.
À uma, porque o bem jurídico tutelado — a democracia e o Estado Democrático de Direito — são conceitos jurídicos indeterminados e de conteúdo estritamente político. Na prática, o Estado brasileiro optou por valer-se do Poder Judiciário para eliminar seus inimigos políticos. E aqui não se trata de adversários porque eles põem em sério risco a confiança da sociedade nas instituições e nos processos decisórios, o que abala a própria estrutura e estabilidade do Estado Democrático de Direito. Com efeito, esta foi uma opção do legislador infraconstitucional ao criar tais crimes e inseri-los no Código Penal. O projeto de lei que deu origem à lei promulgada ainda sob o governo de Bolsonaro é de autoria do ex-deputado Hélio Bicudo, do PT-SP, e foi proposto bem no início da década de 90.
À duas, porque se trata de um tipo penal cuja consumação se dá na tentativa, alertou ainda o ministro Fux. Segundo a melhor doutrina penal, a tentativa como crime consumado é inconstitucional, pelo fato de que isso enseja uma dificuldade quase insuperável para se determinar, com a clareza e a objetividade que o processo penal no Estado Democrático de Direito exige, cada fase do que se chama iter criminis.
O iter criminis consiste nas etapas necessárias para a consecução do tipo penal: cogitação, preparação, execução, consumação e exaurimento. A cogitação e os atos preparatórios são penalmente irrelevantes e, portanto, impuníveis. Os atos executórios, no entanto, são puníveis na medida em que produzem o dano ou grave ameaça ao bem jurídico tutelado. Para isso, é imprescindível que todos os elementos do tipo penal imputado estejam presentes. E é isto que deverá ser verificado pelo STF na instrução processual penal.
Pelo pronunciamento do “camarada Xandão” no dia do julgamento, já se pode prever o resultado do julgamento. O ministro exibiu um vídeo com filmagens em ordem cronológica, as quais demonstram a violência que foi perpetrada pelos manifestantes no dia 8 de janeiro. Para ele, estes atos constituem a violência e grave ameaça ao Estado de Direito e ao funcionamento regular das instituições democráticas. Seu discurso foi claramente uma antecipação de seu entendimento sobre o caso. A persecução penal parece ser irrelevante para o ministro.
É bom se ter em mente que, de fato, a delação parece ser a única prova contundente ao ler a denúncia. Isso vulnera muito o processo penal que, mesmo eivado de nulidades conforme leciona a mais rigorosa doutrina, vai seguir firme por força da conjuntura política. E por mais que se diga o contrário, o que restou demonstrado pelo Procurador-Geral da República — as tais provas contundentes — são apenas conversas de WhatsApp, publicações nas mídias sociais e documentos (minutas) e atas de reuniões delatadas por Mauro Cid. O perigo de o processo ser questionado e anulado, caso a direita volte ao poder central, é real.
Na democracia burguesa, quando alguém ou algum movimento ameaçam a confiança que a sociedade tem no establishment, as instituições democráticas reagem com a mesma severidade e contundência com que foram confrontadas.
Quanto aos comunistas e revolucionários, seguem garantidas suas liberdades constitucionais, pelo menos enquanto não ameaçam a estabilidade e a confiança da sociedade neste perverso sistema.



