Em 19 de março de 1964, cerca de 500 mil pessoas tomaram as ruas de São Paulo na primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, um ato que marcou o início de uma série de manifestações contra o governo de João Goulart. Organizada por entidades como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), a União Cívica Feminina (UCF), a Fraterna Amizade Urbana e Rural e a Sociedade Rural Brasileira, com apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), a marcha partiu da Praça da República rumo à Praça da Sé. O objetivo declarado era defender a democracia contra o que chamavam de ameaça totalitária e socialista representada por Goulart, que, dias antes, em 13 de março, discursara no comício da Central do Brasil, prometendo reformas de base e assinando decretos de desapropriação de terras e nacionalização de refinarias.
As organizações por trás do evento reuniam setores conservadores da sociedade, incluindo o clero católico, lideranças empresariais e políticos como o deputado Antônio Sílvio Cunha Bueno, do Partido Social Democrático (PSD). A marcha, realizada no dia de São José, padroeiro das famílias, carregava faixas com dizeres como “O Brasil não será uma nova Cuba” e distribuía o “Manifesto ao Povo do Brasil”, exigindo a deposição do presidente. O IPES, conhecido por articular interesses econômicos e políticos alinhados ao anticomunismo, e a FIESP, representando a elite industrial, foram peças-chave no financiamento e na logística, enquanto figuras como o padre Patrick Peyton, da Cruzada do Rosário pela Família, davam o tom religioso ao movimento. A promessa era de reformas “pela liberdade” e “pela Constituição”, contra as mudanças propostas por Goulart, vistas como passos rumo a um regime autoritário de esquerda.
O evento rapidamente ganhou adesão em outras cidades, culminando na Marcha da Vitória no Rio de Janeiro, em 2 de abril, já após o golpe militar de 1º de abril que derrubou Goulart. No total, 49 marchas ocorreram até junho de 1964, mobilizando milhões. Os organizadores, que incluíam desde associações femininas até entidades empresariais, pregavam a união da família e da nação contra o que chamavam de “comunismo ateu”. Lideranças como Conceição da Costa Neves e Leonor Mendes de Barros, esposa do governador Ademar de Barros, tiveram papel ativo na convocação, enquanto a Força Pública garantia a ordem com caminhões financiados por arrecadações do governo paulista.
Na conjuntura de 1964, o mundo vivia a Guerra Fria, mas a verdadeira disputa no Brasil não era um eco de rivalidades entre grandes potências. Tratava-se de um embate entre o imperialismo e as nações atrasadas, como o Brasil, que buscavam autonomia frente à ditadura mundial dos monopólios. Esses interesses externos, aliados a elites locais, promoviam golpes de Estado para submeter países em desenvolvimento ao controle econômico e político, sufocando movimentos nacionalistas. No Brasil, essa tensão remontava aos anos 1930, com a Revolução de 1930 e suas conquistas, como a industrialização, agora ameaçadas por forças que culminariam no golpe de 1964 e nos 21 anos de Ditadura Militar.
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, apesar de seu discurso democrático, foi um instrumento decisivo para pavimentar o golpe que entregou o país ao imperialismo. A vitória dos militares em 1964 consolidou a destruição das aspirações nacionalistas de Goulart, como a soberania sobre o petróleo e a reforma agrária, abrindo c, oaminho para a dominação econômica que marcaria as décadas seguintes.
