Esquerda

O ‘primeiro Estado neonazista’ e a velha histeria esquerdista

Esquerdista se desespera, ignora os fatores sociais por trás de Hitler e Trump, e termina ajudando a fortalecer o monstro que tanto teme

O jornalista Eduardo Guimarães publicou um artigo no portal Brasil 247, intitulado O primeiro Estado nazista, declarando que “agora, o mundo tem um Estado neonazista declarado, com direito a saudações nazistas e medidas que vão do racismo e da homofobia ao expansionismo hitleristas”, comparando o recém-empossado presidente norte-americano, Donald Trump, à ditadura comandada pelo Partido Nazista na Alemanha, sob a liderança de Hitler. Trata-se de um exagero cujo resultado não é outro senão o de causar confusão em relação ao governo Trump e ao imperialismo. Diz o autor:

“Já no primeiro governo Trump, grupos de supremacistas brancos e neonazistas receberam com entusiasmo suas declarações sobre os casos de violência registrados em Charlottesville, vendo neles apoio a suas posições.

(…)

E nem precisamos falar de Elon Musk, cujas peripécias neonazistas como apoiar o partido nazista alemão, o AFD (Alternativa para Alemanha), ou fazendo a saudação nazista diante do mundo na posse de Trump.

(…)

O termo neonazista, porém, refere-se a pessoas ou a grupos, mas nunca se referiru a nações e, muito menos, a alguma potência militar, econômica e cultura. No último dia 20 de janeiro de 2025, isso mundo. Agora, o mundo tem um Estado neonazista declarado, com direito a saudações nazistas e medidas que vão do racismo e da homofobia ao expansionismo hitleristas. E isso é só o começo…”

Duas coisas devem ser ditas sobre as colocações de Guimarães. A primeira delas é que a mera pescaria de eventos sem a devida análise do fundo social não bastam para caracterizar um fenômeno. Concretamente, ainda que Trump se reivindicasse um sucessor de Adolf Hitler, seria preciso ver as forças sociais por trás do governo do republicano, e não as loucuras ditas ou mesmo as interpretações de gestos como a tal “saudação nazista” de Musk.

O nazismo foi, acima de tudo, o instrumento do imperialismo alemão para resolver dois problemas: esmagar o principal inimigo da burguesia alemã, o proletariado organizado em partidos, sindicatos, órgãos de imprensa, associações esportivas, culturais etc.; e a partilha do mercado mundial, onde a primazia de Reino Unido, EUA e França prejudicava a burguesia alemã. Ao contrário de Hitler, que era apoiado pelo imperialismo, Trump é denunciado pelos monopólios, inclusive nos termos reproduzidos por Guimarães.

Há, aqui, uma contradição que torna impossível ao bilionário norte-americano ser um “novo Hitler”, mesmo que queira. Ele precisaria dar uma guinada muito profunda em sua política, o que não está posto quando vemos, por exemplo, a pressão que o presidente norte-americano fez para que “Israel” aceitasse um cessar-fogo sob termos que o enclave imperialista já negara ao longo de 2024.

Há ainda outro problema, de método, muito bem explicado por Karl Marx, na obra clássica O dezoito de brumário de Luís Bonaparte, que reproduzimos abaixo:

“Entre as obras que abordaram o mesmo tema na mesma época, apenas duas merecem destaque: Napoléon le petit, de Victor Hugo, e Coup d’état, de Proudhoun.

Victor Hugo limita-se a amargas e engenhosas críticas ao editor responsável pelo golpe de Estado. Quanto ao próprio evento, ele o apresenta como um raio caindo de um céu sereno. Não vê nele mais do que um ato de força de um único indivíduo. Não percebe que, ao fazer isso, está, na verdade, engrandecendo esse indivíduo, em vez de diminuí-lo, ao lhe atribuir um poder pessoal de iniciativa sem paralelo na história universal.”

Karl Marx acerta ao apontar que figuras como Napoleão III são, em última análise, reflexos do desenvolvimento das contradições e lutas de classes em uma determinada sociedade. Ao analisar Napoleão III, Marx destaca que ele representava as confusões e os dilemas da burguesia francesa da época.

De forma semelhante, no mundo contemporâneo, figuras como Donald Trump expressam as contradições dentro da burguesia norte-americana, refletindo a crise do imperialismo e a polarização cada vez maior entre diferentes setores dessa classe, com os monopólios lutando pela manutenção de seus interesses. Entre outras coisas, a ditadura dos monopólios desencadeou aventuras militares como a trilionária “Guerra ao Terror”, que se por um lado beneficiou petroleiras, bancos e os setores mais poderosos da burguesia, por outro, levou o resto dos EUA, da União Europeia e do Japão à ruína.

Ao se insurgir contra o setor imperialista da burguesia dos EUA, Trump expressa os anseios dos industriais médios, empresários que não lucram com essas guerras e que buscam sobreviver à crise mundial sem pagar o preço dela. A análise de Marx continua pertinente, pois nos ajuda a entender como essas figuras são também expressões das profundas contradições do sistema econômico e político em que surgem.

Com isso em mente, temos que o desespero de Guimarães é uma forma velada de derrotismo, de estabelecer, de antemão, que o inimigo é demasiadamente hábil para ser derrotado. Nem Luís Bonaparte, nem Hitler e menos ainda Donald Trump devem ser apresentados de forma tão exagerada, como demônios saídos do inferno, dotados de algum poder místico. São, acima de tudo, expressões da luta de classes.

Ao contrário de Hitler, Trump não é apoiado pelos grandes monopólios, banqueiros e demais setores de ponta da classe dominante. Essa compreensão é fundamental porque levado às últimas consequências, o que a política de Guimarães produz é um ambiente mais propício ao surgimento do que ele tanto teme: o fascismo. Daí a importância de se ter a cabeça no lugar.

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