Coluna

“Renda não merecida” e alta tecnologia

Como o setor que aperenta ser um dos mais produtivos da economia moderna já vive praticamente do rentismo

Um fato curioso sobre neoliberalismo é que sua relação com o liberalismo clássico existe somente no nome. Um dos conceitos centrais para economistas como Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill – todos celebrados pelos acólitos do neoliberalismo -, de uma forma ou de outra, era a ideia de “renda não merecida”. Em Smith, o tema aparecia diretamente relacionado à posse da terra. Os liberais clássicos eram ferozes opositores da aristocracia feudal europeia decadente. Para eles, não havia nada mais repudiante do que a renda cobrada pela nobreza sobre aqueles que trabalhavam na terra. Eram, finalmente, economistas burgueses.

Em Mill (apesar do termo ter sido utilizado pela primeira vez pelo economista também norte-americano Henry George), a ideia de renda não merecida (unearned income, em inglês) também se aplicava aos detentores de um monopólio que, ao fixarem o preço de sua mercadoria, extraem renda de todo o mercado, renda essa não atrelada à produção, permitida pelo controle do mercado, que é a diferença entre o preço fixado pelo monopólio e o preço de mercado do produto.

Essas práticas consideradas criminosas pelos liberais do capitalismo infante hoje são a regra, e são saudadas pelos ditos neoliberais. Para eles, o iFood cobrar uma tarifa sobre restaurantes e entregadores (o setor produtivo) por terem desenvolvido um sistema que já está acabado há anos é algo a ser celebrado. Parecem não entender que o imposto sobre a terra de que tanto Smith reclamava, nada mais é do que a taxa abusiva que plataformas como iFood, Uber, Apple, Google, Facebook, Mercado Livre, etc cobram pelo “terreno digital” que conquistaram, espaço sem o qual ninguém é encontrado no vasto terreno virtual da rede mundial de computadores.

Isso para não mencionarmos o preço dos eletrônicos, dos produtos de alta complexidade. Será que Apple, Samsung e Google calharam de produzir celulares que custam os mesmos US$1.200,00, ou será que são um cartel que concordam em não competir agressivamente para manterem seus lucros os mais altos possíveis. Caso um competidor atinja o grau de qualidade dessas empresas, como é o caso de muitas fabricantes chinesas, sanções e tarifas protecionistas certamente virão. É um cartel que controla até mesmo políticas de Estado. Onde fica o livre mercado?

Mas acima de todas essas práticas extorsivas, esse imposto privado cobrado sobre a economia produtiva (que já paga aluguéis altíssimos pela terra onde habitam e produzem), estão as licensas de propriedade intelectual. Antigamente, o preço de um livro ou um disco estava diretamente associado à produção do objeto físico, a mídia em que a produção intelectual era gravada. Hoje, com a distribuição de bens digitais pela internet, não há custo de reprodução, nem de transmissão do livro, música ou filme, mas cobra-se uma taxa que supostamente cobriria o custo do trabalho intelectual de criar a obra. Acontece que essa taxa é cobrada eternamente e quem não quiser pagá-la e contornar os bloqueios (facilmente contornáveis) para acessar o conteúdo é considerado um criminoso, um pirateiro digital.

Se a propriedade intelectual se restringisse a bens culturais, o rentismo sobre a posse desse bem intangível não seria tão nocivo à sociedade, mas esse não é o caso. Software, por exemplo, pode ser patenteado pelas nossas leis. Finalmente, é texto (como não amar os juristas!). Tanto que há o movimento de Software Livre, sobre o qual tanto falamos neste espaço. Mas até mesmo interfaces digitais são patenteáveis.

Pergunta ao leitor: por que, historicamente, apenas dois “fabricantes” de processadores dominam o mercado mundial, Intel e AMD? Por causa da licença sobre o conjunto de instruções x86 e x86-64 elaborados, respectivamente, por essas empresas norte-americanas. Colocamos fabricantes entre aspas porque a AMD não fabrica nada há algum tempo, dedicando-se apenas ao design de chips, que são fabricados majoritariamente em Taiuã.

Há novos chips no mercado. Aqueles usados nos celulares, dispositivos de baixa potência. A Apple introduziu sua arquitetura M alguns anos atrás e, ano passado, a Qualcom trouxe seus chips Snapdragon para computadores Windows. Todos esses projetos apoiam-se na Arm, uma empresa britânica que, além de projetar chips (e não fabricá-los) desenvolveu o conjunto de instruções homônimo, patenteado e licensiável.

Por que isso é importante? Supondo que alguém desenvolva um novo processador, tarefa extremamente complexa, quem irá desenvolver software para essa plataforma? Aqui entram os conjuntos de instruções x86, x86-64, Arm e outros que não mencionamos aqui. Para valer-se do software existente, o hardware deve aderir a alguma dessas interfaces, ou especificações, senão todos os programas terão que ser recompilados para a nova plataforma, um esforço homérico. A Arm, portanto, parasita com suas licenças a Qualcom e até mesmo a Apple (numa escala menor) que elaboraram chips muito eficientes sem se apoiar nos projetos da Arm, apenas aderindo ao seu conjunto de instruções. Por isso tudo é tão caro, por isso há tão pouca concorrência.

Ao contrário do que defendiam os economistas clássicos, sobre os quais Marx se apoiou para elaborar sua teoria, no neoliberalismo, a melhor forma de se ganhar dinheiro é não produzir. Quem ousar produzir, seja ele um capitalista industrial ou um trabalhador, haverá de pagar altos rendimentos aos parasitas da economia.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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