A jornalista do portal de esquerda Brasil 247 Tereza Cruvinel publicou, no último dia 7, um artigo intitulado 8 de Janeiro: Não esqueceremos, com comentários sobre o aniversário de dois anos da manifestação bolsonarista, ocorrida nos primeiros dias do terceiro mandato do governo Lula. Segundo Cruvinel, o povo brasileiro viveu no episódio “o dia mais sombrio da era democrática pós-ditadura”, uma colocação curiosa, uma vez que trata como secundário episódios como a derrubada da presidenta Dilma Rousseff, a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o impedimento ilegal de sua candidatura nas eleições de 2018, o que foi também o segundo golpe de Estado, sendo fundamental para a vitória do candidato Jair Bolsonaro. A jornalista continua:
“O 8 de janeiro não foi apenas uma ação violenta e sem objetivo claro, perpetrada espontaneamente pela multidão convidada pelas redes sociais para a ‘festa da Selma’. Isso é o que dizem hoje os bolsonaristas, num esforço para minimizar a gravidade dos fatos que levarão muitos deles à prisão, inclusive Bolsonaro. O que houve foi uma tentativa de ‘abolição violenta do Estado de Direito’ para reverter o resultado de uma eleição limpa e livre. Uma tentativa de golpe que nunca esqueceremos.”
Em primeiro lugar, se houve “uma tentativa de ‘abolição violenta do Estado de Direito’ para reverter o resultado de uma eleição limpa e livre”, porque ela não foi bem sucedida? Finalmente, os manifestantes encontraram o terreno livre para fazer depredações à vontade, um fenômeno inédito em manifestações públicas, que normalmente, são fortemente vigiadas pelas forças da repressão. Claro, em se tratando de atos da direita, é esperado que os manifestantes contem com uma complacência da polícia, mas até para os padrões da direita, quebrar vidros, ocupar prédios públicos e defecar em mesas nos gabinetes é demais.
Contrariando o que diz Cruvinel, porém, os bolsonaristas simplesmente fizeram sua manifestação, um tanto acabou sendo preso pela PF, mas a maioria voltou para casa e o Brasil, misteriosamente, continuou sendo governado pelo presidente Lula e tendo a atual configuração do Congresso Nacional. “Um golpe falhou e o outro também”, diz Cruvinel, mas para a tese de que houve um golpe no dia 8 de janeiro pelo menos começar a fazer sentido, precisaria ser explicado como o “golpe falhou”, uma vez que não houve nada que os enfrentasse.
É possível, porém, uma outra explicação, que por sinal, não entre em choque com o fato de os manifestantes tenham ido embora – pelo menos em sua grande maioria -: a de que independente dos modos da extrema direita, o que os bolsonaristas que se dirigiram à Esplanada dos Ministérios naquela tarde de janeiro, não tinham ambições maiores do que extravasar sua oposição à vitória de Lula. Essa, inclusive, é a percepção da maioria do povo brasileiro, como destacado pelo colunista do jornal golpista Folha de S. Paulo Camila Rocha, que no artigo 8 de janeiro precisa de contexto, diz:
“Ainda que 55% dos brasileiros afirmassem que Bolsonaro tentou promover um golpe para se manter no poder, 65% compreendiam o 8 de janeiro apenas como um ato de vandalismo. Mesmo entre eleitores de Lula e petistas essa interpretação do 8 de janeiro como mero vandalismo é majoritária.”
Cruvinel também brinda os leitores com uma pesquisa:
“Passados dois anos, uma pesquisa Quaest nos diz que 86% dos brasileiros condenam o acontecido. Devemos celebrar isso, mas trabalhando para que este repúdio seja mais concreto e se torne unanimidade, bandeira de todos e não só da esquerda. Quando isso acontecer, não haverá espaço para candidatos e partidos que representem ameaça à democracia. Hoje, apesar dos 86%, este espaço ainda existe e ainda é largo.”
Naturalmente, não sendo controladas pelo povo, mas pela burguesia, tais números devem ser encarados com a máxima desconfiança, porém é digno de nota que a direita identifique que a pesquisa se dedique a dizer apenas que os brasileiros reprovam o ato bolsonarista, enquanto outra diz que mesmo reprovando, não consideram que houve uma tentativa de golpe, percepção inclusive de lulistas, conforme destacado na coluna publicada pela articulista de Folha de S. Paulo. Ora, se nem a própria base, Cruvinel e os propagandistas do “dia mais sombrio” convencem, que esperar da população simples? É, porém, a essa tarefa que a articulista de Brasil 247 se dedica, acrescentando ainda:
“Não vamos esquecer que eles planejaram nos impor uma nova ditadura civil-militar, e para isso planejaram suspender nossos direitos e garantias constitucionais com um estado de defesa, matar o presidente e o vice eleitos com tiro ou veneno, sequestrar e matar o ministro Alexandre de Morais, do STF, talvez enforcado, pelas razões que conhecemos.”
Se planejaram e o que planejaram não importa, mas o fato é que quando a direita quer dar um golpe de Estado, ela não leva vovós defecadoras e outras criaturas igualmente folclóricas para um quebra-quebra. Em 1964, por exemplo, atearam fogo no prédio da UNE na época, na cidade do Rio de Janeiro. Tanto para o golpe de 64 quanto para o golpe de 2016, os EUA deslocaram a IV Frota Naval para o litoral brasileiro.
Em todos os casos, finalmente, a campanha da imprensa imperialista é também intensa como a esquerda deve se lembrar de uma época em que o falecido jornalista Paulo Henrique Amorim cunhou o acrônimo PIG, Partido da Imprensa Golpista. Absolutamente nada disso estava presente no ato de 8 de janeiro. Não se pode esquecer, finalmente, que na América Latina em especial, não existe golpe de Estado sem os EUA, o que faz do 8 de Janeiro não apenas o mais folclórico já ocorrido, mas também o mais inovador de todos.
Não houve nenhum golpe. O que houve foi uma manifestação normal seguida por dois fenômenos recorrentes no Brasil ao longo dos últimos anos: o senso de oportunidade da direita imperialista e a falta de senso crítico da esquerda, que entra de cabeça na campanha repressiva impulsionada pela direita centrista, para fins de disciplinar a extrema direita, mas dois anos e uma eleição municipal depois, dá muitos sinais de não ter feito outra coisa além de contribuir para a desmoralização da esquerda e o fortalecimento do bolsonarismo.
É possível que a organização de uma ditadura esteja sendo preparada pela direita e discutida, porém ao o ato dos defecadores como uma tentativa de dar um golpe de Estado no País, a única coisa que a esquerda faz é fortalecer o aparelho repressivo, controlado pelo imperialismo e até o Mossad, dar de bandeja aos bolsonaristas o papel de “mártires-perseguidos-defensores da liberdade”, e com isso, facilitar enormemente a construção da ditadura que pensam estar combatendo.
Em política, é importante ter a cabeça no lugar, algo que o artigo demonstra estar em falta, para Cruvinel e para as direções da esquerda, que aderem à campanha do imperialismo sem prestarem atenção na armadilha que estão armando para si mesmos e o povo brasileiro.