No editorial do portal de notícias de esquerda Brasil 247 intitulado Governo Lula assume a tarefa urgente de civilizar as polícias, lemos que “o governo do presidente Lula se viu na obrigação de civilizar as polícias e reverter uma cultura de incentivo à violência pela violência”. Tal colocação parte de uma premissa equivocada: a possibilidade de “civilizar” instituições cujo propósito é justamente o de atacar violentamente a população. Se leis ou Propostas de Emenda Constitucional fossem suficientes para reformar a polícia, o arcabouço jurídico brasileiro — que proíbe a pena de morte e condena a tortura — já teria tornado desnecessária qualquer iniciativa adicional. Diz o texto:
“O texto reafirma valores fundamentais como necessidade, moderação e conveniência na conduta dos agentes da lei. Além disso, incorpora novos princípios como razoabilidade, responsabilização e não discriminação, visando garantir que as ações policiais sejam pautadas por um respeito maior à vida e aos direitos das pessoas.”
Esse trecho ignora que o ordenamento jurídico brasileiro já impõe limites claros à atuação policial. A Lei 9.455/1997, que define os crimes de tortura, estabelece em seu Artigo 1º que constitui crime “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental” para obtenção de informações, como forma de castigo, ou por discriminação, entre outros motivos. A pena prevista é de dois a oito anos de reclusão, sendo agravada em casos específicos, como quando cometida por agentes públicos ou contra grupos vulneráveis.
Essa lei, que proíbe expressamente práticas como tortura e maus-tratos, já deveria ser suficiente para garantir a moderação e respeito à vida por parte da polícia. No entanto, a criação de novas normas, como a que “incorpora princípios como a não discriminação”, evidencia que as leis existentes são sistematicamente ignoradas. Isso demonstra que o problema não está na ausência de normas, mas no fato de que, apesar das leis existentes, os fenômenos identificados pelo editorial continuam acontecendo.
São leis sociais, finalmente, que estruturam a atuação policial. A impunidade que permeia as instituições repressivas, amplamente tolerada por promotores e juízes, expressa, acima de tudo, uma política dedicada aos interesses de determinadas classes. Isso fica ainda mais evidente nas decisões do Judiciário contra os trabalhadores, no golpe de 2016 “com o Supremo com tudo” e no perfil das vítimas da violência policial: moradores de favelas, índios e, de maneira geral, os setores mais pobres da classe trabalhadora e os jovens estudantes.
O fato desses fenômenos se reproduzirem em todos os estados e por todas as agências policiais, desde as federais até a guarda municipal, passando pelas PMs e pelas polícias civis, reforçam a existência de uma lei social atuando para garantir que a violência policial se repita ao longo dos anos, das décadas, sem nenhuma alteração. Elas compartilham uma orientação comum: reprimir os setores oprimidos da população, com especial ênfase sobre jovens e trabalhadores.
A brutalidade policial ocasionalmente atinge a classe média, mas sua atuação é essencialmente um instrumento de terror contra as massas trabalhadoras. Esse papel histórico é reconhecido no próprio editorial, que admite:
“O Brasil vive há décadas uma situação crítica no que concerne à segurança pública, tema que afeta profundamente a qualidade de vida dos cidadãos. A excessiva e descriteriosa violência policial integra uma cultura de vingança, errada e anacrônica. Justiçamentos frequentemente andam junto com a corrupção, sendo ambos resultado da infiltração do crime na instituição policial. Cumpre extirpar esse câncer da segurança pública, frequentemente abrigado por governadores truculentos, demagogos aliados ao crime.”
Ao reconhecer que a violência policial “integra uma cultura de vingança” e que o Brasil vive há décadas uma “situação crítica”, o editorial inadvertidamente confirma que a polícia opera como um braço armado da dominação burguesa. Tais características não podem ser corrigidas ou reformadas; elas são inerentes à instituição policial. Por isso, a solução não está em “civilizar” a polícia, mas em sua abolição e na organização de um modelo de segurança pública verdadeiramente democrático.
O editorial do Brasil 247 acerta ao dizer que “cumpre extirpar esse câncer da segurança pública”, mas erra ao localizá-lo em uma abstrata “cultura de vingança”. Tal política ignora que o problema está na própria estrutura policial. Como disse Washington Luís, “a questão social no Brasil é um caso de polícia”.
Portanto, é necessário acabar com a polícia e implementar uma política democrática para a segurança pública, que acabe com a burocracia corrupta, sendo eleita e controlada pela população que elegeu seus membros. Isso, sim, seria “extirpar o câncer”.