Notei uma coisa interessante na matéria Ofensiva rebelde surpreende a ditadura síria e toma Aleppo, em que o PSTU capitula mais uma vez diante do imperialismo ao falar sobre o golpe de estado na Síria: o PSTU é um partido que luta contra o regime. Longe de mim comentar dietas alheias, mas o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado tem um problema de peso.
Na matéria, assinada por Fábio Bosco, observa-se a predominância do termo “regime” para se referir ao Estado sírio.
Para o articulista, esse termo é depreciativo, assim como para os jornais da burguesia, como Globo, Isto É, CNN Brasil e Metrópoles, entre outros. No entanto, “regime” não deveria carregar essa conotação negativa todas as vezes, já que todo Estado, independentemente de sua natureza, se organiza em um regime político.
A primeira acepção de “regime” no dicionário Michaelis é: “forma de governar, administrar, reger ou dirigir”. Logo a primeira acepção do dicionário. Por isso, devemos sempre acessar o “pai dos burros”.
A segunda entrada no dicionário abrange praticamente todos os tipos de administração: “sistema administrativo de certos estabelecimentos ou órgãos públicos ou particulares”. Portanto, até o PSTU possui um “regime”, pois é uma entidade organizada, um partido político.
Por curiosidade, somente na quinta acepção da palavra “regime” encontramos o significado de reduzir a quantidade de comida para emagrecer. Algo que o PSTU parece entender bem, dado o grande emagrecimento que sofreu com a perda de militantes nos últimos anos.
Regime vem do latim regimen, que, segundo o Dicionário Latino, tinha os seguintes significados:
- ação de conduzir, guiar, direção;
- direção, comando, governo e administração.
Regimen vem de regere, que originou a palavra “regência” na língua portuguesa. Ninguém costuma depreciar os regentes de orquestra, até onde eu sei. Regere, por sua vez, tem a mesma origem de rex, ambos sendo derivados da raiz reg – do proto-indo-europeu. Rex é o que deu origem à palavra “rei” no português, não sendo de forma alguma depreciativa.
Sendo assim, não há margem para equívocos: trata-se de uma palavra que, em essência, não carrega um sentido negativo. No entanto, para o autor da matéria, a palavra é sempre usada de forma depreciativa, à exaustão. Prova disso é a frequência com que “regime” é associado a países considerados ditaduras pelo PSTU, como se apenas esses países fossem caracterizados como “regimes” ou mesmo como “ditaduras”.
O mais curioso é que praticamente todos os países mencionados no texto são apelidados de “regime”, o que torna redundante o uso contínuo dessa palavra para depreciá-los. É semelhante a dizer que todas as pessoas são altas, o que eliminaria a necessidade de distinguir entre altos e baixos. Esse raciocínio encontra paralelo na análise marxista sobre por que a classe operária seria a última a tomar o poder e encerrar a luta de classes. Mas, exigir de alguém do PSTU que siga qualquer coisa minimamente marxista é pedir demais.
No entanto, minha crítica ao texto de Fábio Bosco não é sobre a repetição que o torna maçante. Conforme mencionado, o texto classifica quase todos os países como “regimes”. Ainda assim, há algumas omissões que levantam suspeitas.
São 33 vezes em que “regime” aparece no texto.
A distribuição é: a Síria, um país pequeno e pobre que precisou do apoio russo e iraniano para manter um mínimo de estabilidade após os ataques imperialistas, é chamada de “regime” 21 vezes. Já a Turquia recebe esse epíteto em sete ocasiões – talvez, se abandonar os BRICS e se alinhar totalmente ao imperialismo, o termo associado a seu nome se torne mais favorável. O Irã, um dos maiores defensores da causa palestina, é referido como “regime” quatro vezes, enquanto a Rússia, apenas uma.
Já a palavra “ditadura”, muito mais utilizada como algo ruim, embora também tenha sentido não depreciativo, como no caso “ditadura do proletariado” e em relação a formas de governo em países da antiguidade, como em Roma, aparece 14 vezes no texto, todas as vezes com o intuito de atacar os países aos quais o termo é associado.
Somando “ditadura” com “regime”, temos 47 ocorrências de apenas dois termos, empregados sistematicamente para atacar os mesmos países.
Das 14 “ditaduras” do texto, 13 são em referência à Síria de Assad, enquanto apenas uma se refere a uma hipotética ditadura do HTS, partido do imperialismo na região.
“Ao longo da revolução síria, houve várias experiências democráticas de auto-organização que precisam ser retomadas. Não podemos aceitar que a ditadura Assad seja substituída por outra ditadura de grupos autocráticos, seja o HTS ou qualquer outro. A luta por liberdades democráticas para o povo trabalhador sírio caminha junto com a luta contra a ditadura Assad.”
Os Estados Unidos da América são mencionados apenas duas vezes no texto, sem menção negativa. Já “Israel” é citado duas vezes, mas parece que ofensas ao Estado genocida não foram necessárias e vemos o estilo de escrita de bula de remédio abaixo:
“Israel controla parte importante das colinas de Golã desde 1967 e recentemente tomou áreas rurais da cidade de Quneitra (sem que haja qualquer reação do covarde regime sírio).”
Repare, inclusive, que, no trecho acima, “Israel”, o Estado ocupante das Colinas de Golã, não recebe conotação negativa ou positiva, já a Síria é chamada de “covarde regime sírio”.
Há também quatro menções a Trump, sem qualquer termo depreciativo associado a seu nome. Em contraste, Bashar al-Assad é chamado de “assassino” uma vez, tem seu nome relacionado a “ditadura” outras quatro vezes e “dinastia” uma vez, das nove em que é mencionado. Joe Biden, atual presidente dos EUA e um dos principais responsáveis pelo genocídio na Palestina e no Líbano, além de responsável direto pela derrubada de Assad, nem citado é. O mesmo vale para Netaniahu, que comemorou o golpe na Síria e disse que a derrubada de Assad abre novas oportunidades para “Israel”.
O Daesh é mencionado apenas uma vez no texto, de forma neutra e sem qualquer termo depreciativo. Já o HTS (Hayat Tahrir al-Sham) aparece oito vezes, incluindo duas com seu nome completo. Mesmo nas críticas ao grupo, não há o uso dos mesmos epítetos aplicados aos “regimes” e “ditaduras” mencionados anteriormente, como segue no trecho abaixo.
“Nenhuma confiança no HTS!
O Hayat Tahrir al-Sham (HTS) é um dos grupos que cumpriu um papel negativo durante a revolução síria, ao buscar mudar a natureza da revolução democrática para uma guerra civil sectária. Essa organização é acusada de reprimir a população e de assassinar oposicionistas como o famoso radialista Raed Fares. Uma de suas principais fontes de apoio vinham do Qatar.”
Enfim, uma crítica a quem tomou o poder com a ajuda de todo o imperialismo mundial, enquanto a raiva aos países e povos que resistem minimamente escapa pela baba no momento em que o texto é escrito.
Ficam, portanto, dúvidas a serem respondidas: nem os EUA, nem “Israel” são regimes políticos? Por que não merecem a raiva do PSTU? Por que o tom é tão ameno quando se trata de um Estado genocida e do principal país do imperialismo em todo o planeta?
Lendo o texto, parece que os argumentos a favor da política do PSTU são muito escassos. Por isso a repetição de palavras que soam de forma negativa para os menos politizados. Trata-se de uma tentativa de convencimento pelo cansaço ao ler o texto, não pelo convencimento com base em uma política correta.
Observação: enquanto este texto era redigido, Fábio Bosco publicou um novo texto no Opinião Socialista, desta vez com a situação síria mais avançada do que no texto anterior. No entanto, a postura capituladora permanece inalterada. Já na manchete, encontramos o uso da palavra “ditadura” (Revolução síria derruba ditadura após 13 anos de luta), que é repetida outras 10 vezes, todas relacionadas à extinta Síria. Além disso, “regime” aparece 14 vezes em referência à Síria, de um total de 24 ocorrências no texto. A novidade é o uso de “regime ucraniano”, que destoaria da posição tradicional do PSTU. Pedimos encarecidamente para que o autor retire a palavra “regime” ao se referir à Ucrânia, para que o texto fique mais de acordo com a posição tradicional do PSTU.