As ações dos combatentes palestinos do Hamas têm dado trabalho não apenas aos soldados de “Israel” como também à grande imprensa mundial, acostumada a “formar a opinião” dos cidadãos mediante o uso de uma série de artifícios retóricos que simulam um discurso “crível”, “civilizado”, “democrático”. As técnicas têm-se mostrado inúteis diante da evolução dos fatos.
Quanto mais “Israel” assassina a população civil de Gaza, sem economizar na crueldade de bombardear hospitais, de impedir a chegada de ajuda humanitária, de matar de fome ou de doenças pessoas já feridas pelos estilhaços de bombas, de não permitir a saída de feridos graves para tratamento, mais a sua imagem, cuidadosamente cultivada pela incansável propaganda sionista, se assemelha ao retrato de Dorian Gray.
As imagens correm o mundo graças à internet, fazendo concorrência ao aparato de propaganda sionista. É como se a população, tal qual o personagem do filme “O Show de Truman”, tomasse consciência de que o mundo retratado nos meios de comunicação é apenas uma invenção. Quanto mais a imprensa se esforça para defender o indefensável, mais os seus artifícios se põem à mostra.
Em recente editorial, a Folha de S. Paulo, um jornal que costumava dizer que estava “a serviço da democracia”, fazia um verdadeiro exercício de contorcionismo verbal para defender a prisão de milhares de estudantes e professores norte-americanos por causa de protestos em universidades de todo o país contra o genocídio em Gaza. Acusados de “antissemitismo”, foram reprimidos com violência pela polícia.
Diz o jornal: “Cenas de policiais entrando em campi para deter os manifestantes se multiplicaram, evocando os confrontos que convulsionaram os Estados Unidos no fim dos anos 1960, quando os estudantes eram recrutas em potencial para a inglória Guerra do Vietnã”. De maneira sutilmente cínica, o escriba reduz os protestos dos estudantes pelo fim da Guerra do Vietnã ao seu medo de serem convocados para morrer em campo de batalha, tentando anular o conteúdo político das manifestações.
E prossegue: “Por óbvio, a situação atual é diversa, e é a fronteira entre a liberdade de expressão e os arroubos de racismo antissemita notados nos protestos que apresenta desafios a quem tem de lidar com a questão”. Os estudantes do fim dos anos 1960 estavam defendendo a própria pele e os de 2024 são racistas. Vale notar a escolha da expressão “racismo antissemita”. Agora, o conteúdo político das manifestações se reduz a algum tipo de perversão de indivíduos “racistas”.
O fato é que os manifestantes defendem a ação do Hamas, que, além de ser um partido político (como atesta a ‘insuspeita’ Wikipedia), tem um braço armado que opera a resistência no território palestino. A imprensa insiste em tratar o Hamas como “grupo terrorista” para, com isso, tentar opor o povo palestino à operação militar – a estratégia, diga-se, vem dos EUA e de Israel. Na esteira dessa escolha semântica, vem outra: “a guerra entre ‘Israel’ e o Hamas”, o Hamas no lugar de Palestina, como se os palestinos, de conjunto, estivessem muito satisfeitos com a opressão vivida desde que sua terra foi invadida para que ali se estabelecesse um estado artificial.
No Brasil, depois de um Primeiro de Maio anódino, de manifestações esvaziadas (enquanto, em vários países do mundo, a data deu ocasião a protestos contra o genocídio em Gaza), estudantes da USP decidiram fazer um acampamento (de dois dias) e protestos contra o massacre. Por óbvio, o despertar atrasado para a luta e a timidez da manifestação fazem parecer que queriam imitar os colegas dos EUA. Uma reunião inicialmente marcada para hoje (9/5) entre os estudantes, que reivindicam o cancelamento de convênios com universidades de Israel, e os representantes da USP foi desmarcada sem explicações. Tudo indica que a USP não está acreditando no fôlego do movimento.
A verdade é que a esquerda brasileira, dominada pelo onguismo, vem deixando para trás os seus valores. ONGs propalam o movimento identitário, que, no âmbito das grandes empresas, tem sua expressão nos programas de diversidade e inclusão. A cultura woke, com seu aparato de propaganda, embaralhou as cartas da esquerda universitária, cooptando jovens para uma política semelhante a um culto religioso, que busca fincar âncora na legislação do estado burguês, com a aprovação de leis ou, na sua ausência, com a influência sobre o ânimo de juízes.
No Brasil, a lei da injúria racial, aparentemente concebida para proteger a população negra de insultos, converte-se em proteção do discurso sionista. As organizações sionistas usam o recurso de confundir maliciosamente a crítica política (antissionismo) com o “racismo” (antissemitismo) – e, ao fim e ao cabo, essa lei pode servir para punir manifestações políticas. É o crime perfeito: institui-se a censura política em nome da “democracia” e do combate ao “discurso de ódio”.
Dadas as circunstâncias, o combate à censura é hoje uma luta primordial, que deveria ser abraçada pela esquerda, como o foi no período da ditadura militar, quando Chico Buarque cantava: “Afasta de mim esse cálice/ cale-se”. O discurso da imprensa burguesa já não convence mais; daí a insistência da burguesia na defesa da “censura do bem”, que não sabemos se é, de fato, “do bem”, mas sabemos que é, de fato, censura.