Nascido em 29 de outubro de 1962 no campo de refugiados de Khan Yunis, no Sul da Faixa de Gaza (à época, sob ocupação do Egito), Iahia Ibrahim Hassan Sinuar foi um dos maiores líderes revolucionários da centenária luta do povo palestino por sua libertação, tendo se tornado, ao final da vida, dirigente máximo do partido Movimento Resistência Islâmica (Hamas, na sigla em árabe). Sua família é oriunda de Majdal ‘Asqalan, cidade de onde foram expulsos durante a Nakba, palavra árabe que significa “Catástrofe”, usada para designar a ocupação oficial de “Israel” no território palestino e a subsequente expulsão de quase um milhão de árabes de suas terras, em 1948. Após a Nakba, a cidade fora renomeada pela ditadura sionista como Ascalão e integrada ao Distrito Sul de Telavive, capital de “Israel”.
Khan Younis, a cidade onde crescera, foi descrito como um “bastião” de apoio à Irmandade Muçulmana, segundo as palavras do jornalista israelense Ehud Yaari, membro do think tank sionista Washington Institute for Near East Policy, consideração repercutida pela rede britânica BBC na matéria Yahya Sinwar: Who was the Hamas leader? O próprio Yaari, segundo informa a BBC, entrevistou Sinuar na prisão quatro vezes, evidenciando um fenômeno que marcaria a juventude do ex-dirigente do Hamas, que são as prisões.
A primeira ocorreu em 1982, ao passo que a segunda se deu em 1985. Durante esse período, conhece o fundador do Hamas, o xeque Ahmed Yassin. Dois anos após, é fundado o maior partido da Resistência Palestina, ocasião em que Sinuar fica encarregado da organização da segurança interna do grupo, a al-Majd. Ele ainda tinha apenas 25 anos.
A convicção de Sinuar levou-o a se destacar no na atividade dedicada a manter a disciplina do partido, o que é utilizado à exaustão pela propaganda sionista, que, através disso, procura retratá-lo como um monstro, apresentando-o sob epítetos bárbaros como “carniceiro de Khan Younis”. A trajetória do jovem militante, no entanto, demonstra o quão longe da verdade estão seus detratores.
Ainda no início da década de 1980, Sinuar se matriculou na Universidade Islâmica de Gaza, onde graduou-se em Estudos árabes (equivalente no Brasil ao curso superior de Letras). Sob forte influência das duras condições de vida do povo palestino, humilhados em sua própria terra, e a politização impulsionada pela Irmandade Muçulmana, muitos jovens contemporâneos do futuro dirigente do Hamas buscavam no Islã a força ideológica necessária para por fim à barbárie promovida pela ditadura sionista. É nessa conjuntura que Sinuar é preso pela primeira vez, por participar de organizações que combinavam o islamismo com a política revolucionária.
O ano, deve-se destacar, é também marcado pelo começo da capitulação da OLP na luta contra a ocupação sionista da Palestina, tendo como grande consequência o horripilante Massacre de Sabra e Chatila. É nessa conjuntura que se desenvolve, na Universidade Islâmica de Gaza, um escritor prolífico, poliglota e um pensador astuto.
Refletindo essa capacidade analítica, ainda na prisão, o mártir observou a crescente fratura na sociedade israelense e vaticinou: “as fissuras entre as populações religiosas e seculares da entidade sionista se aprofundariam. Depois de vinte anos, você se tornará fraco, e eu o atacarei,” disse Sinuar durante o cárcere.
Também na prisão israelense, um livro foi encontrado pelos carcereiros. Com número de páginas variando entre 500 e 600. Segundo o ex-chefe do Shin Bet (seviço secreto israelense) Yaakov Perry, tratava-se de uma tradução feita à mão do livro do ex-chefe do Shin Bet, Carmi Gillon, The Shin Bet Between the Schisms (“O Shin Bet entre os cismas”, em tradução livre). Traduzido do hebraico para o árabe, o livro trata do papel da rede de espionagem nos territórios ocupados, sendo usado por Perry como exemplo da determinação de Sinuar.
Também durante seu período no cárcere, o mártir escreverá sua obra-prima. O Espinho e a Cravo foi concluída após 15 anos de prisão. Contrabandeado para fora das masmorras sionistas com a ajuda de dezenas de prisioneiros, segundo o prefácio do romance, os colaboradores trabalharam como “uma colônia de formigas” para a obra sair dos muros da ditadura e ser publicada.
Quase autobiográfico, o romance oferece traz a história de uma família palestina que vive no campo de refugiados de al-Shati, em Gaza, após ser expulsa à força de Majdal Asqalan nos territórios ocupados em 1948, tal como ocorreu com seus pais. O narrador da história é Ahmed, é o indivíduo mais jovem da família.
A história segue a luta da família após o desaparecimento do pai e tio do narrador, abordando eventos que se desenvolvem ao longo de 37 anos, destacando também as condições de vida precárias encontra pelos palestinos nos campos de refugiados. O filho mais velho da família se junta ao movimento secular Fatá, enquanto os outros irmãos trabalham com a resistência islâmica. Um dos irmãos, Ibrahim – alter ego de Sinuar na obra -, se destaca pela inteligência e habilidades que fazem dele, um especialista em rastrear agentes israelenses, além de hábil decifrador dos códigos usados pelos espiões sionistas para se comunicarem.
Ao longo de sua trajetória, Iahia Sinuar não apenas demonstrou coragem e comprometimento com a causa palestina, mas também revelou um intelecto refinado que transcende as barreiras da propaganda imposta pela ditadura sionista. Sua produção literária é uma expressão de sua profundidade cultural e de sua capacidade de analisar criticamente a realidade em que vivia.
Em O Espinho e o Cravo, Sinuar usou a narrativa ficcional para lançar luz sobre os dilemas, as privações e a resistência do povo palestino. Combinando elementos autobiográficos e históricos, a obra não apenas desmente a imagem de “bárbaro” atribuída a ele por seus inimigos, mas também consolida seu lugar como um cronista fundamental das vivências palestinas. A riqueza de detalhes e a habilidade em conectar o pessoal ao coletivo ilustram uma mente que compreendia profundamente as nuances da luta de seu povo.
Por sua vez, Majd revela o olhar crítico e a perspicácia de Sinuar ao dissecar os mecanismos de controle e opressão utilizados pela ditadura sionista. A exposição meticulosa do funcionamento do Shin Bet, bem como das táticas de coerção e assassinatos seletivos, é um testemunho de sua capacidade analítica. A obra não é apenas um ataque ao opressor, mas um manual de resistência, reafirmando a importância do conhecimento como arma no enfrentamento da ocupação.
Em Hamas: Tentativas e Erros, Sinuar se volta para a reflexão sobre a organização de resistência que ajudou a construir. O livro destaca sua visão estratégica, ao mesmo tempo que examina criticamente os desafios enfrentados pelo Hamas em sua evolução. Com honestidade e profundidade, ele aborda os erros cometidos e as lições aprendidas, consolidando uma perspectiva histórica que reafirma o papel do Hamas como baluarte na luta pela libertação da Palestina.
Longe de ser o “bárbaro sedento de sangue” propagado por seus detratores, Sinuar é a personificação de uma resistência iluminada pelo conhecimento, pela análise crítica e pela fé em um futuro livre para seu povo.