O escritor Uriano Mota publicou, no último dia 26, no portal Brasil 247, uma coluna intitulada A tentativa de golpe que planejou matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Defendendo a tese de que “a luta contra o fascismo é permanente”, Mota comemora as notícias mais recentes acerca do indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL):
“Agora, enquanto escrevo, recebo a notícia de que a Polícia Federal indiciou Bolsonaro, Braga Netto e mais 35 por tentativa de golpe. Demorou.”
O autor, assim, defende a perseguição e as prisões efetuadas pela Polícia Federal contra os bolsonaristas, optando, em vez de utilizar a via política – como campanhas, propaganda e mobilização popular – pelo campo judicial, que, por sua própria natureza, não lida com a questão política de maneira direta.
Uma justiça funcional, isto é, justa, se baseia na lei, não em uma avaliação política das intenções ou projetos de grupos como os militares para então julgá-los. Isso é um erro estratégico grave, pois enquanto se discute se determinada ação é “legal” ou “ilegal”, o movimento popular fica à margem, sem poder de ação nas ruas ou nos locais de trabalho, onde a luta política de fato acontece.
Ao apoiar-se em um sistema que, por sua essência, serve ao aparato repressivo do Estado, Mota acaba alimentando as bases do próprio autoritarismo que diz combater, sem perceber que esse caminho pode fortalecer os inimigos de qualquer coisa que possa ser chamada de democracia. Além disso, é fundamental observar que a acusação de tentativa de golpe, no âmbito jurídico, só faz sentido quando há uma transgressão real da lei, o que não foi o caso em relação aos militares.
A judicialização da política acaba criando um paradoxo: os agentes do Estado, como a Polícia Federal e o Judiciário, são “mobilizados” para lutar contra o fascismo, sem no entanto, que haja uma real contestação de sua ação por parte da sociedade civil. Isso transforma a luta contra a extrema direita em um processo burocrático, tendo consequências decisivas para a eficácia do que Mota propõe, a luta contra o fascismo, algo indicado no trecho abaixo:
“Mas agora vamos ao lugar onde se confundem unidas a realidade a ficção. Isto é, o general Mario Fernandes gritou e discutiu com os seus iguais sobre a necessidade de uma postura feroz, de guerra, ‘como em 64’, chamando-os para o golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil em 1964. Então continuemos, de modo mais próximo. A continuidade do plano seria uma matança geral à Pinochet no Chile. Matança dos militantes socialistas do Brasil. Isso quer dizer, para continuar na ‘ficção’, houve a possibilidade clara de guerra civil, que seria desencadeada com Lula morto. O povo brasileiro, os patriotas iriam aceitar esse fato consumado de assassinatos bárbaros?”
Mota descreve a cúpula do setor mais forte da burocracia estatal – os generais do Exército brasileiro – como assassinos “bárbaros”, o que não é nenhuma novidade, mas é preciso dizer: tampouco é crime. Crime, segundo o Código Penal brasileiro, seria:
“Art. 1º – Considera-se crime a ação ou omissão (grifo nosso) que, prevista em lei, seja punida com pena.”
Ainda, antes que alguém possa argumentar que houve uma “tentativa” de se cometer crime, eis o que estabelece o arcabouço jurídico brasileiro no mesmo código:
“Art. 14 – Considera-se tentativa de crime a ação do agente que, começando a execução do crime, não consegue consumá-lo por circunstâncias alheias à sua vontade.”
O general Mario Fernandes, embora tenha expressado os métodos autoritários e bárbaros, não está sendo punido por nada do que falou ou planejou, pelo menos à luz da legislação brasileira. O que ele fez não configura, conforme o Código Penal, crime nem tentativa de crime. A legislação considera tentativa apenas a ação do agente que começa a execução do crime e não a consuma por fatores alheios à sua vontade, o que não é o caso do discurso de Fernandes, que ainda se encontra no campo da palavra e do planejamento.
Mesmo que suas intenções sejam claras, a lei brasileira não pune meras manifestações de ideias ou planos que não se concretizam em ações ilegais. Assim, ao colocar sua fé em um sistema jurídico que não pune o que Fernandes articulou, Mota parece esquecer que, no Brasil, a legislação protege a liberdade de expressão, mesmo quando as ideias são profundamente autoritárias, enquanto as ações concretas, como a execução de um golpe, precisariam ser materializadas para que houvesse uma transgressão legal.
Afirmar, portanto, que há uma tentativa de golpe sem base legal é um equívoco, pois o que os generais falam, ainda que repulsivo, não se traduz em crime, pelo menos não até que se materialize em algo mais concreto. Além disso, o general Fernandes não é uma exceção na máquina estatal.
Sua postura autoritária e violenta reflete um padrão encontrado em diversas instâncias do poder público brasileiro. Durante o governo Dilma Rousseff, por exemplo, a Polícia Federal chegou a praticar “tiro ao alvo” com o rosto da presidentaç O Ministério Público, por sua vez, tem figuras como Deltan Dallagnol, Rodrigo Janot, Raquel Dodge e Paulo Gonet, que não apenas se mostraram abertamente alinhados à direita, mas também exerceram um papel decisivo na perseguição política contra adversários do regime.
No Judiciário, juízes como Sérgio Moro, Marcelo Bretas e Wilson Witzel reforçaram um modelo de justiça onde as decisões não se baseiam em provas concretas, mas em interesses políticos, como bem destacou Rosa Weber, ao afirmar que “a literatura permite” determinadas condenações. Assim, se Mota realmente acredita que essa corja, composta por figuras como essas, fará alguma coisa contra Bolsonaro ou contra a extrema direita, ele está terrivelmente mal informado sobre as instituições nas quais ele deposita sua fé.