O portal esquerdista Esquerda Online publicou uma matéria assinada por David Cavalcanti, intitulada A Frente Ampla derrota o governo neoliberal no Uruguai, enaltecendo o retorno da Frente Ampla ao governo uruguaio com a vitória de Yamandú Orsi na eleição presidencial, tratando a vitória como resultado de uma mobilização popular, segundo o órgão, ocorrida após “uma mobilização de escuta e mobilização de bases, pois foi um amplo processo democrático onde teve mais de 400 mil votos de participação com 3 candidatos disputando internamente para escolher a Chapa que resultou depois numa unidade de todos os setores”. Segundo o órgão esquerdista, “a vitória da Frente Ampla foi o resultado da mobilização das bases jovens da campanha das esquerdas que conquistou uma virada na reta final, visto que algumas pesquisas indicavam um empate técnico”, uma fantasia que escamoteia o fato de Orsi ter sido eleito sem nenhuma crise no país vizinho, fenômeno único nas Américas e no mundo.
Para uma caracterização mais concreta do que está ocorrendo no Uruguai, é fundamental recordar que a ascensão de Lacalle Pou em 2019 contou com um forte apoio militar. Naquele momento, os quartéis assumiram um papel de destaque, convocando a direita tradicional e setores ultraconservadores para sustentar o governo.
Não por acaso, as políticas neoliberais implementadas durante seu mandato encontraram respaldo entre os altos comandos das Forças Armadas. Desta vez, porém, não se viu nada parecido. Não houve o mesmo clamor militar ou uma articulação explícita para barrar a Frente Ampla. Um observador atento já deveria perceber o entranhamento dos interesses do imperialismo com Orsi, mas o próprio Esquerda Online dá ainda mais detalhes que tornam a vitória estranha.
Orsi, apresentado como um “moderado” na coalizão, conseguiu se eleger não pela força das mobilizações populares, mas pela confiança que transmite à classe dominante. Seu histórico político, marcado por políticas repressivas enquanto intendente de Canelones, já indicava que ele não seria um agente de ruptura, mas sim um gestor confiável dos interesses estabelecidos.
Durante sua administração em Canelones, Orsi liderou ações que resultaram na prisão de milhares de pessoas, sobretudo relacionadas ao tráfico de drogas, uma política que ecoa mais as prioridades dos EUA do que as demandas populares. A repressão às drogas e o endurecimento na segurança pública são medidas típicas do imperialismo para manter o controle social nos países atrasados.
É evidente que o verdadeiro protagonista dessa eleição não foi o povo uruguaio, mas os bancos e as grandes corporações. Com a direita “tradicional” desgastada após o governo neoliberal de Lacalle Pou, o imperialismo encontrou na Frente Ampla o instrumento perfeito para manter seus interesses intactos, agora sob uma capa “progressista”, tal como ocorrido no Chile, onde Gabriel Boric cumpre um papel análogo, de preparar o país para a volta de uma direita neoliberal mais radical.
Como que para reafirmar os verdadeiros compromissos políticos de Orsi, suas declarações sobre a Venezuela, chamando o governo bolivariano de “ditadura” não são outra coisa além de uma demonstração do direitismo do presidente eleito. Um ataque gratuito, que serve apenas para agradar os EUA, reforçando o alinhamento da Frente Ampla com a política externa imperialista. Enquanto Milei, na Argentina, é uma figura caricata que desestabiliza a região, Orsi aparece como o governante ideal: confiável para os monopólios internacionais e aceitável para uma esquerda domesticada.
Orsi prometeu diálogo, mas seu governo será, na prática, mais um capítulo da continuidade das políticas neoliberais, agora com um verniz “socialista”. Enquanto a Frente Ampla celebra uma vitória que pouco representa para os trabalhadores, o Uruguai segue sendo um país controlado pelo grande capital.
Para uma mudança real acontecer, é necessário um rompimento com o modelo político atual, onde as instituições funcionam como engrenagens de um sistema voltado exclusivamente para os interesses da burguesia. A Frente Ampla, ao invés de liderar esse rompimento, escolheu ser a gestora do regime.
A vitória de Orsi é menos um triunfo da esquerda e mais uma demonstração da habilidade do imperialismo em se reinventar. Ao invés de tanques, usaram os banqueiros. Ao invés de uma direita aberta, usaram uma “esquerda” moderada. O resultado é o mesmo: um Uruguai submetido aos interesses estrangeiros. Alheio ao fundo social dos acontecimentos no Uruguai, Cavalcanti comemora:
“A importância dessa vitória, também se reforça pois estamos no contexto também da ascensão da extrema-direita global, principalmente depois da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, visto que quanto mais governos progressistas tivermos na América Latina, mas resistência haverá contra tentativas golpistas.”
Celebrar a vitória da Frente Ampla como um avanço é não apenas um erro, mas uma capitulação, uma demonstração de medo da extrema direita por mostrar que a esquerda está disposta a aceitar qualquer coisa que a proteja da extrema direita. Com isso, tornam-se inimigos da verdadeira mobilização popular.