O artigo Mujica foi decisivo para retorno da esquerda à Presidência do Uruguai, de Marcia Carmo, publicado no portal Brasil 247, procura enaltecer o papel do ex-presidente José Mujica na vitória de Yamandú Orsi e no retorno da Frente Ampla à Presidência do Uruguai, afirmando que “logo após a confirmação do resultado, uma multidão saiu às ruas de Montevidéu, carregando bandeiras do país e gritando: ‘Uruguai’, ‘Orsi’ e ‘Pepe'”. A análise de Carmo, contudo, peca pelo excesso de boa vontade com a direitista esquerda uruguaia e pela falta de substância política, e social, sobre o que de fato aconteceu no único país do continente em que a eleição não foi quase uma guerra civil.
Segundo a versão idílica do acontecimento, narrada pela analista, a vitória contra um governo praticamente de extrema direita não foi conquistada com a combatividade de uma mobilização popular radicalizada, mas com “lágrimas”. Diz Marcia Carmo em sua coluna:
“Mujica, de 89 anos, foi um dos primeiros a chegar para votar na manhã deste domingo, no segundo turno da eleição presidencial. E foi quem fez o discurso que levou os uruguaios às lágrimas, há um mês, no dia 22 de outubro. ‘Estou lutando contra a morte. Mas eu tinha que vir aqui hoje (no palanque de Orsi). E estou feliz porque quando meus braços não se levantem mais, haverá milhares de braços continuando nesta luta’, disse Mujica.”
Ora, mas qual luta? O próprio Orsi tratou de desmentir Mujica e destacar que seu governo será de “todos”, o que na América Latina, tradicionalmente é uma forma de dizer aos trabalhadores para não se animarem muito porque a classe dominante manterá sua ditadura. No caso específico das nações latino-americanas, concretamente, a primazia pertence ao imperialismo, sobretudo norte-americano, que domina toda América do Sul, com exceção de um único país: a Venezuela.
Pois adivinhe quem o presidente eleito escolheu para atacar, em uma região onde fascistas como Milei na Argentina, Noboa no Equador e Boluarte no Peru saqueiam e aterrorizam a população, em benefício único e exclusivo dos monopólios internacionais? A Venezuela. “Isso não é uma democracia, é um regime autoritário e, se quiserem, uma ditadura”, disse Orsi sobre o principal inimigo do imperialismo na América do Sul, de maneira totalmente gratuita, mas colocando às claras o tamanho do equívoco cometido por Carmo.
Essa política não apenas repete a propaganda clássica do imperialismo contra a República Bolivariana, mas demonstra como o futuro presidente uruguaio se afasta de qualquer base social minimamente identificada com as reivindicações clássicas da esquerda, como a soberania das nações atrasadas contra o imperialismo, e se aproxima de posições tipicamente alinhadas aos interesses norte-americanos. Como que para reforçar isso, o presidente dos EUA, Joe Biden, parabenizou a vitória do vassalo, chamando-o de “vanguarda da promoção da democracia”, o que concretamente, destaca o protagonismo do país na defesa da ditadura imperialista:
“O Uruguai tem estado na vanguarda da promoção da democracia nas Américas, bem como na liderança da Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica para investir em inovações que criem oportunidades para a classe média em todo o hemisfério.”
Embora cínico, Biden não dá essa caracterização à toa. Enquanto a instabilidade no resto do subcontinente obriga a aventuras como um folclórico Milei à frente da Casa Rosada (sede do governo argentino), além de outras figuras tão ou mais estranhas que o folclórico presidente argentino, no Uruguai, sem nenhuma grande mobilização, sem fraturas sociais e nada do gênero, temos um governo de extrema direita se preparando para fazer a transição a um governo “socialista”.
Ou a sociedade uruguaia evoluiu em termos de racionalidade como nenhuma outra no planeta, a ponto de já ter atingido o socialismo antes do resto da humanidade, ou a ditadura imperialista está assegurada no país vizinho, que não teme, inclusive, ceder a condução do Estado a alguém identificado com a esquerda. Isso, por sua vez, não se deve a outro fenômeno, mas à confiança que a classe dominante tem no “esquerdista”. Esse fenômeno precisa ser considerado levando-se em conta o fato de que no Brasil, por exemplo, embora domine e use o PSOL à exaustão para se infiltrar na esquerda, o imperialismo não confia no partido pequeno-burguês para gerir seus negócios como confia na Frente Ampla uruguaia, o que é significativo do direitismo desse arranjo político no país. Indiferente a todos os sinais de que é o imperialismo o fator principal para a vitória de Orsi, a jornalista segue apostando no sonho e continua:
“O ex-professor de história, criado na zona rural do país, ele foi prefeito de Canelones, a segunda maior cidade do Uruguai, depois da capital, Montevidéu. E entrou no radar de Mujica há cerca de trinta anos, quando passou a se interessar pela política e passou a integrar o Movimento de Participação Popular (MPP), liderado pelo ex-presidente. Orsi, admirador do ex-presidente, é um defensor da justiça social, da educação pública, da geração de empregos, principalmente para os jovens, e da maior segurança pública para os uruguaios.”
Essa descrição parece idílica à primeira vista, mas a ênfase em “maior segurança pública” para os uruguaios não pode ser ignorada. Para a esquerda, segurança pública nunca é uma bandeira central, mas uma consequência de uma transformação estrutural na sociedade, que elimine a pobreza e as condições de desespero que levam à criminalidade.
O destaque que essa reivindicação teve na campanha de Orsi revela mais do que uma preocupação legítima com os uruguaios: é parte da campanha do imperialismo, que consciente do fato de sua política levar amplas parcelas da população à pobreza e à miséria, impulsiona em todo o continente uma política de repressão intensa. Até no que poderia ter de esquerdista, isto é, uma política mais humana com a questão da criminalidade, que considere-a como consequência acima de tudo, Orsi deixa claro seu alinhamento com o imperialismo.
A eleição de Orsi, portanto, não representa um triunfo da esquerda uruguaia, mas sim de um projeto cuidadosamente elaborado para manter o país alinhado com os interesses dos Estados Unidos e seus aliados. Confiar que a liderança de Orsi fortalecerá a Frente Ampla como um partido verdadeiramente à esquerda é, no mínimo, uma ingenuidade perigosa. O que sua campanha deixa claro é que, longe de ser um defensor da transformação social, ele representa uma rendição ao imperialismo. Ao invés de celebrar a vitória de Orsi como um retorno triunfal da esquerda ao poder no país vizinho e no fortalecimento do campo no continente, a análise precisa se focar em denunciar os elementos reacionários e imperialistas que pavimentaram o caminho para sua eleição.