Eis que após o decreto do “fim” da classe operária, decretam seu retorno. Curioso que, em ambas as oportunidades, a classe operária não tenha sido informada nem de sua morte ou de seu recente renascimento, segundo nos informam dois articulistas do portal A Terra é Redonda. Em texto intitulado “O trabalhador voltou à cena política?”, Graça Druck e Luiz Filgueiras respondem que sim.
O trabalhador voltou, graças à recente luta pelo fim da escala 6×1, capitaneada pela iniciativa privada do sr. “Rick” Azevedo, proprietário do movimento Vida Além do Trabalho (VAT™), marca registrada na junta comercial, aparentemente, segundo seu proprietário. Pareceria estranho que um movimento popular, operário, fosse marca registrada de um indivíduo (que recentemente se elegeu vereador), mas vivemos na era do empreendedorismo. Todo mundo quer empreender, mas voltemos ao texto em questão.
“[O trabalhador] voltou nas redes sociais e nas ruas, mobilizados na luta pela redução da jornada de trabalho, que interessa a todas as categorias de trabalhadores: pobres e remediados, negros e brancos, homens e mulheres, hetero e homossexuais etc.”
Nossos companheiros decretam não apenas a volta do trabalhador, como o fim do identitarismo sectário, política “democrática” do imperialismo para dividir a classe operária. Mas será mesmo? Um fato curioso, destacado por figuras de proa do identitarismo nas redes sociais, é que uma “deputada trans preta” e um “homem preto gay” serão os responsáveis pelo fim da escala 6×1 no Brasil. Lideranças inusitadas para um movimento já inusitado por ser privatizado.
Nossos autores rasgam elogios a “Rick” e reconhecem sua propriedade sobre o movimento VAT™:
“O responsável direto por isso, e que deu partida a essa mobilização, é o Movimento “Vida Além do Trabalho” (VAT), iniciado pelo vereador do Rio de Janeiro Rick Azevedo, o mais votado do PSOL na recente eleição municipal, e que teve adesão imediata nas redes sociais e apoio nas ruas. Com base em sua própria experiência, de “viver para trabalhar”, de forma exaustiva e precária, surgiu a iniciativa de uma petição online que já reuniu três milhões de assinaturas e, em parceria com a deputada do PSOL, Érika Hilton, foi elaborada uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) alterando a jornada de seis dias de trabalho (48 horas por semana como limite máximo) por um de descanso, para quatro dias de trabalho (36 horas por semana como limite máximo) por três de descanso – sem redução do salário.”
Já destacamos neste Diário o caráter curioso das 36 horas semanais. Seriam nove horas diárias? Mas o texto da PEC de Érika Hilton mantém o limite de horas diárias em oito. O projeto não é claro e especifica a jornada de quatro dias por semana, numa proposta incongruente até mesmo do ponto de vista matemático. Nossos autores, talvez por excessiva empolgação, tentam dourar a pílula ainda mais dizendo que cairemos de 48 horas semanais para 36, quando a Constituição de 1988 já garantiu o limite de 44, justamente no inciso que Hilton pretende modificar.
Somos obrigados a concordar que a luta pela redução da jornada de trabalho é histórica. Apesar do Partido da Causa Operária ser acusado de favorável à escala 6×1, defendemos a jornada de 35 horas semanais – sete horas por dia, cinco dias por semana – há décadas e entendemos a dificuldade em lutar por essa demanda. Como o próprio texto destaca, a redução da jornada de trabalho para 8 horas por dia veio nos Estados Unidos após intenso combate dos trabalhadores, cujo momento mais marcante foi o dia 1o de Maio de 1886, que deu origem ao dia dos trabalhadores.
A luta é tão difícil que mesmo os trabalhadores organizados em ação, que colocaram abaixo a ditadura no Brasil, não conseguiram alcançar a meta de redução da jornada para 40 horas semanais, tendo que se contentar com o compromisso das 44 hoje vigentes.
“No entanto, há inúmeras brechas na legislação que, na prática, possibilita burlar esse limite, como a escala 6×1 – vigente, principalmente, nos setores de comércio e serviços”, reconhecem Druck e Filgueiras. As brechas começam pelos acordos coletivos, especificados na Constituição e mantidos na PEC de Hilton. Os acordos resultam diretamente da luta da classe operária que, desde a imposição neoliberal sobre o País, encontra-se numa defensiva histórica que lhe rendeu inúmeras derrotas, coroadas pelo golpe de Estado de 2016 que ceifou inúmeros direitos garantidos pela CLT. O texto da PEC não apenas mantém as brechas como não fala nada sobre a manutenção dos salários, algo que está no discurso e nos panfletos do movimento VAT™, mas que não aparece onde interessa, como garantia legal.
Mais próximo do final do artigo, chegamos à maior contradição de todas. A mobilização do VAT™, de “Rick”, teria passado “a pautar os noticiários, a imprensa corporativa, os diversos canais de redes sociais, os partidos e sindicatos.”
Que tenha pautado partidos e sindicatos de esquerda, não é surpresa, dado que muitas dessas organizações estão paralisadas e conseguem apenas reagir à última moda esquerdista. Agora, que tenha pautado partidos de direita, como o PSB de Márcio França e Geraldo Alckmin, e a imprensa burguesa, isso é uma novidade. Como que os porta-vozes dos patrões estariam interessados em dar um aumento de quase 20% a seus funcionários através da redução da jornada de trabalho? Estariam com medo de petições online? Ou de atos que, apesar da cobertura, divulgação na imprensa e presença de parlamentares, não conseguiu agrupar muito mais do que alguns milhares de manifestantes?
Coloquemos a história a limpo: um movimento não apenas liderado por, mas que é posse de um “homem preto gay” recorreu a uma “deputada preta trans” para elaborar uma PEC que, com apoio dos porta-vozes da burguesia, vai reduzir a jornada de trabalho no Brasil. Tudo isso durante uma sequência histórica de derrotas da classe operária? Não somos partidários de justificar a paralisia com base na correlação de forças, mas há de se convir que, neste cenário, uma vitória seria algo muito inusitado. Nem o governo petista consegue vitórias muito mais simples no Congresso Nacional.
O trabalhador de fato não voltou, mas foi jogado nos holofotes do debate político para levar um duro golpe da burguesia, dos grandes empresários que não conseguem mais manter a lucratividade de suas empresas num cenário de demanda tão variável. Querem, através do “fim da jornada 6×1” impor algo pior, a flexibilização do trabalho. Mesmo que fossem mantidos os salários, a média salarial no setor do comércio, que abarca milhões de trabalhadores, é pouco mais que dois salários mínimos. O que aconteceria num cenário 4×3? A exemplo de outros países atrasados e mesmo de países imperialistas, trabalhadores teriam mais tempo para uma jornada dupla de trabalho.
Ao contrário do que buscam apresentar os autores do texto e as supostas lideranças do movimento operário privatizado, a proposta não visa reduzir a carga de trabalho, mas aumentá-la, através da flexibilização. Usam a vontade do trabalhador de ter o final de semana livre (algo subentendido no “fim da escala 6×1”) para conduzi-lo a uma jornada flexível na qual fatalmente irá trabalhar durante os finais de semana. Por isso, devemos defender uma semana de 35 horas, máximo de 7 horas por dia, final de semana livre, sem redução de salários.